Paisagem cancelada e assédio urbanístico: o caso do Porto Maravilha no Rio de Janeiro

novembro 12, 2022

Cristovão Fernandes Duarte

Pós-Doutor pela Cátedra UNESCO Diálogo Intercultural em Patrimónios de Influência Portuguesa da Universidade de Coimbra. Doutor em Planejamento Urbano e Regional IPPUR-UFRJ. Mestre em Urbanismo pelo PROURB/FAU-UFRJ. Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-UFRJ. Professor Associado do PROURB/ FAU-UFRJ

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende analisar os impactos produzidos sobre a paisagem urbana da Região Portuária do Rio de Janeiro a partir da implementação da Operação Urbana Consorciada, conhecida como “Porto Maravilha”, aprovada pela Lei Complementar nº 101 de 23 de novembro de 2009. Estendendo-se por cerca de 5 milhões de metros quadrados e abrangendo a totalidade dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, que compõem a Região Portuária, o Porto Maravilha foi apresentado aos cariocas como a maior Operação Urbana Consorciada do Brasil. Sua implementação ficou a cargo do consórcio “Porto Novo” formado pelas empresas Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia, sob a coordenadoria da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP).

A cidade vivia um período de grande excepcionalidade, tendo sido recém-eleita para sediar os Jogos Olímpicos de 2016[1], em meio aos preparativos para a realização da Copa do Mundo de Futebol de 2014. O montante dos recursos disponível para investimentos na cidade não encontrava precedentes históricos, sobretudo se levarmos em conta o curto espaço de tempo em que deveriam ser implementados. Se tomarmos em conta apenas os valores oficialmente declarados, relativos ao custo das Olimpíadas de 2016, chega-se à casa dos 40 bilhões de reais. Tais investimentos representavam, no ano de 2010, duas vezes e meia o total anual da arrecadação da cidade ou, ainda, 25% do PIB Carioca[2].

 Além da construção de instalações esportivas para os jogos, o elenco de obras prioritárias compreendia: a construção, implantação e operação de quatro linhas de BRT – Transoeste, Transcarioca, Transolímpica e Transbrasil, a duplicação do Elevado do Joá, o Porto Olímpico, o Parque Olímpico, a construção do Museu do Amanhã e Museu de Arte do Rio (MAR), entre outras. Vale destacar entre as obras posteriormente adicionadas ao “pacote olímpico”, a construção de um campo de golfe na Área de Proteção Ambiental de Marapendi (APA Marapendi), às margens da Lagoa de mesmo nome.

A estratégia adotada pela Prefeitura da Cidade para justificar o caráter prioritário da Operação Urbana Consorciada do Porto Maravilha e, assim, legitimá-la junto à opinião pública, foi associá-la ao conjunto de obras previstas para a realização dos Jogos Olímpicos. O vínculo inicialmente estabelecido entre as Olimpíadas e as obras de reabilitação urbana da Região Portuária consistiu na alegação por parte da Prefeitura de que a Vila de Mídia e dos Árbitros seria construída como parte das intervenções do Porto Maravilha, no bairro de Santo Cristo. Tal fato, como se verificou posteriormente, não se concretizou como o prometido, tendo a Vila dos Árbitros sido construída na zona oeste da cidade, mais próximo, portanto, do Parque Olímpico, onde se realizariam grande parte dos jogos.

Para a abordagem aqui pretendida, o trabalho foi estruturado em três grandes blocos. O primeiro consiste numa breve notícia histórica da formação da área em estudo, balizando, através de plantas históricas e do acervo edificado, o processo de consolidação urbana do patrimônio cultural e industrial da Região Portuária do Rio de Janeiro. O segundo bloco pretende apresentar, ainda que de forma sucinta, o elenco de propostas desenvolvidas pela OUC Porto Maravilha. Na sequência veremos como se deu a implementação daquelas propostas, bem como os impactos produzidos. O terceiro e último bloco, apresenta imagens do Google Street View, contrastando imagens anteriores e posteriores às intervenções implementadas, visando documentar o processo de “cancelamento” da paisagem que dá título ao presente trabalho.

As expressões “cancelamento da paisagem” e “assédio urbanístico” são aqui utilizadas para enfatizar a forma pela qual determinados projetos de intervenção urbana, como a OUC do Porto Maravilha, promovem a destruição do patrimônio cultural e o apagamento da memória coletiva, ao desconsiderar e desvalorizar a cidade preexistente. Tratam-se, em geral, de projetos voltados para o atendimento de interesses particulares de grupos privados, assumindo, inevitavelmente, um caráter autoritário, avesso ao debate democrático e sem a participação de especialistas, moradores e outros atores sociais. Dessa forma, esses projetos afirmam-se como, supostamente, capazes de resolver todos os problemas da cidade, preconizando, para tanto, a substituição da cidade existente por uma cidade idealizada, construída ex nihilo, onde tudo, funcionaria perfeitamente. Contudo, as soluções impostas de cima para baixo, acabam por criar novos problemas, além de agravar aqueles já existentes. Tal processo gera graves e continuados danos econômicos, sociais e culturais para as cidades, justificando-se, dessa forma as metáforas do assédio urbanístico e do cancelamento da paisagem.

2 FORMAÇÃO HISTÓRICA DA ZONA PORTUÁRIA

Após a fundação da cidade em 1565, seus primeiros habitantes passaram a ocupar as encostas do Morro do Castelo. Nos anos que se seguiram a cidade se espraia, descendo para a planície. Assim, a partir do século XVII, o núcleo urbano pioneiro da cidade passa a ocupar uma área confinada a sul pelos morros do Castelo e Santo Antônio e a norte, pelos morros de São Bento e Conceição, desenvolvendo-se, progressivamente, das margens da Baía de Guanabara até o Mangal de São Diogo, que representou até o início do século XIX um obstáculo à expansão da cidade na direção oeste.

Entre o Morro de São Bento e o Morro do Castelo é aberta a Rua Direita (atual Primeiro de Março), a principal via da cidade até finais do século XIX. A meio da Rua Direita, numa área aterrada às margens da Baía, surge o Largo do Carmo (atual Pça. XV de Novembro). O nome original decorreu de sua localização em frente à Igreja e ao Convento de Nossa Senhora do Carmo. Aí se construiu o principal cais da cidade, onde chegavam mercadorias, visitantes ilustres e pessoas escravizadas.

A localização estratégica dessa grande praça aberta para o mar e principal ponto de embarque e desembarque, faria dela o centro de decisão política da cidade. Nela se construiria a Casa da Moeda e o Real Armazém, transformado depois no Palácio dos Governadores (1743), depois em Palácio dos Vice-Reis (1763) e, quando da chegada da Corte portuguesa em 1808, no Paço Real.

A transformação do Rio de Janeiro em capital da Colônia a partir de 1763, revela e confirma o protagonismo da cidade como entreposto do comércio de pessoas escravizadas e escoadouro do ouro de Minas Gerais para a Metrópole.

Figura 1 – Panorama da cidade do Rio de Janeiro, Emil Bauch, 1873

Fonte: Fundação Biblioteca Nacional – BNDigital. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon255675/icon255675.jpg&gt;

Em meados da década de 1770, com a construção do Cais do Valongo, o embarque e desembarque de pessoas escravizadas e mercadorias, seria transferido para a estreita faixa litorânea entre a Baía e o enfileiramento dos morros situados a norte do núcleo pioneiro da cidade, onde no correr do século XVII, já haviam surgido as primeiras ruas e edificações dos futuros bairros da Saúde e Gamboa.

O marco histórico mais antigo e ainda presente na paisagem da zona portuária é a Igreja de São Francisco da Prainha, construída em 1696 no bairro da Saúde, sobre um promontório nas encostas do Morro da Conceição. A fachada atual data, fundamentalmente, da reconstrução da Igreja, ocorrida em 1740.

Figura 2 – Igreja de São Francisco da Prainha

Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/web/portaldoservidor&gt;. Acesso em: 14 fev.2022

Geograficamente isolados do resto da cidade pelo paredão formado, sobretudo, pelos Morros da Conceição e Livramento, os bairros da Saúde e Gamboa se consolidam como zona portuária da cidade (SEGRE e ORTIZ, 2010, p. 120). Convenientemente abrigadas das vistas da elite da cidade, puderam aí se desenvolver atividades consideradas menos nobres, como o trabalho braçal dos estivadores do cais do porto, a presença dos tripulantes das embarcações, a prostituição e, sobretudo, a chegada de pessoas escravizadas trazidos pelos navios negreiros. O sepultamento dos que adoeciam e morriam passou a ser feito no cemitério dos Pretos Novos, instalado na zona portuária, numa área afastada e pouco habitada junto ao Saco da Gamboa[3].

De acordo com Honorato, não existia uma construção que centralizasse de forma exclusiva o mercado de pessoas escravizadas. A compra e venda dos recém-chegados era desenvolvida em uma série de lojas comerciais situadas nos dois lados de algumas ruas próximas ao Cais do Valongo. Os escravizados ficavam em exposição no térreo (que podia se estender até o quintal), deixando-se o pavimento superior reservado para a habitação do proprietário e sua família (2008, p. 74).

A transferência do mercado de pessoas escravizadas para a região do Valongo contribuiu de forma significativa para a consolidação das atividades comerciais e portuárias da região (ibid., p. 142). Como consequência imediata dos condicionantes acima descritos, a zona portuária se tornaria uma região destinada à moradia da classe trabalhadora e com uma população formada majoritariamente por afrodescendentes. À população local juntaram-se negros libertos que chegavam do recôncavo baiano a procura de trabalho e moradia. “Pequena África” foi como o sambista e compositor Heitor dos Prazeres denominou os arredores da Pedra do Sal no bairro da Saúde. Marco simbólico e reduto de resistência da cultura afro-brasileira no Rio de Janeiro, aí a comunidade se reunia em festas populares, rodas de samba e de capoeira.

As grandes transformações sofridas pela cidade com a chegada da família real no início do século XIX refletiram-se também sobre a zona portuária. Entre as primeiras decisões reais destaca-se a Abertura dos Portos às Nações Amigas decretada em 1808, ano da chegada de D. João. Tal medida produziu um incremento às atividades portuárias e, consequentemente, a ampliação do processo de urbanização e desenvolvimento da Saúde, da Gamboa, do Saco do Alferes (local onde posteriormente surgiria o bairro de Santo Cristo) e da praia Formosa (atual Av. Francisco Bicalho).

Com a proibição do tráfico negreiro em 1831, o Cais do Valongo continuou funcionando normalmente voltado para o embarque e desembarque de passageiros e mercadorias. Embora proibido, o tráfico escravista manteve-se como atividade clandestina em declínio até sua extinção em meados do século XIX.

No ano de 1843, face ao progressivo assoreamento da orla, o Cais do Valongo foi aterrado, sendo construído um novo cais. Denominado Cais da Imperatriz, foi construído para receber a princesa napolitana Teresa Cristina Maria de Bourbon, que viria a se tornar a Imperatriz do Brasil (IPHAN, 2016, p. 34).

Mais tarde, em 1871, é construído à beira mar as Docas de D. Pedro II, um armazém de grande porte, projetado e construído pelo engenheiro André Rebouças. Negro e abolicionista, Rebouças fez constar no contrato da construção do edifício uma cláusula proibindo a utilização de negros cativos. Um incêndio destruiu grande parte do edifício em 1919. Reconstruído em 1920, o edifício encontra-se tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em razão de seus significados históricos, como símbolo da luta pelo fim da escravidão. Em 2003 o Armazém Docas de D. Pedro II foi cedido pelo governo federal para abrigar as atividades da ONG Ação pela Cidadania. Desde então, o prédio passou a ser conhecido como Galpão da Cidadania.

Ainda no final do século XIX é fundado o Moinho Fluminense, a primeira fábrica de moagem de trigo do Brasil. Sua importância para a atividade econômica do porto pode ser avaliada pelo fato de que seu alvará foi concedido pela Princesa Isabel (CHIAVARI, 2021). A inauguração do prédio ocorre em 1887 com a construção de um edifício monumental para época, como um exemplar da arquitetura fabril inglesa. O edifício principal e o silo ocupam a quadra lindeira à Praça da Harmonia, estendendo-se da rua Sacadura Cabral (antiga rua da Prainha) até às margens da baía. Com os sucessivos aterros da zona portuária no início do século XX, o complexo industrial do Moinho Fluminense foi sendo acrescido de novas edificações, interligadas por passadiços sobre as novas ruas até a Av. Rodrigues Alves, junto aos novos armazéns do cais do Porto.

Com a Proclamação da República (1889), a cidade, agora elevada à condição de Distrito Federal, viveria um período de grandes transformações. No início do século XX, concomitantemente com a Reforma da área central levada a cabo pela administração do Intendente Pereira Passos (1902-1906), a Zona Portuária foi radicalmente transformada por vultuosos investimentos do governo federal. Uma grande faixa de aterro preencheu o espaço entre a antiga orla sinuosa e o cais retificado do novo porto da cidade. Sobre a área de aterro foi implantada uma nova malha viária de amplas ruas e avenidas retilíneas, circunscrevendo quadras estreitas e compridas preponderantemente subordinadas às atividades portuárias e à circulação de veículos de carga e descarga. Nestas quadras construíram-se galpões industriais e armazéns destinados ao processamento e estocagem de mercadorias. O gigantismo assumido pelo novo traçado viário mantém-se ainda hoje perfeitamente legível na planta cadastral urbana, contrastando fortemente com o tecido urbano preexistente.


Figura 3 –Planta Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 1923 (DET)

Fonte: Fundação Biblioteca Nacional – BNDigital. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart522721/cart522721.jpg&gt;

A segunda metade do novecentos é inaugurada com as obras do Elevado da Perimetral, construído em várias etapas entre o final dos anos 50 e início dos 70. Trata-se de uma ligação expressa entre a Avenida Brasil, a Ponte Rio Niterói, o Aeroporto Santos Dumont e as pistas do Parque do Flamengo. Excetuando-se as alças de subida e descida no bairro da Saúde, próximo à Av. Barão de Tefé, o elevado não estabelecia nenhuma outra ligação com os bairros portuários da Gamboa e Santo Cristo. Junto ao largo da igrejinha de Santo Cristo, deságua também o fluxo motorizado carreado da zona sul da cidade pelo viaduto São Sebastião, ligado ao túnel Santa Bárbara, construído na década de 60.

A decadência das atividades portuárias e a obsolescência das infraestruturas existentes começam a se fazer notar a partir dos anos 70, sobretudo, em razão dos efeitos produzidos pela “conteinerização” do transporte internacional de mercadorias. Calados mais profundos para receber navios cada vez maiores, bem como a construção de áreas retro portuárias para empilhamento e transporte de contêineres foram exigências que alteraram de forma radical a operação das atividades portuárias, bem como a relação tradicionalmente estabelecida entre porto e cidade (VASCONCELLOS e SILVA, 2009). Ressalte-se ainda a crescente subutilização dos armazéns e galpões existentes na Zona Portuária.

Sobre a fase de estagnação e obsolescência vivida pela Zona Portuária, Carlos (2010) afirma que:

A falta de investimentos públicos em infraestrutura urbana, combinada com uma legislação de uso e ocupação do solo urbano permissiva aos usos incompatíveis com o residencial, foram fatores decisivos para a deliberada degradação da qualidade de vida nos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo (p. 39).

A criação em 1984 da Área de Proteção dos bairros da Saúde, Santo Cristo, Gamboa e Centro (regulamentada em 1988), representou uma vitória do movimento comunitário liderado pela associação de Moradores da Saúde (AMAS) que conseguiu barrar o projeto de “revitalização” elaborado pela Associação Comercial do Rio de Janeiro no início dos anos 1980. A “revitalização” proposta consistia na completa renovação urbana dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, por intermédio da liberação dos gabaritos permitidos para novas edificações. Ainda segundo Carlos, “a iniciativa desconsiderava completamente o conjunto arquitetônico existente, bem como o contexto social e econômico da região” (Ibid.).

Se, nos anos 80, a zona portuária pode, através da mobilização popular, impedir aquela primeira tentativa de cancelamento da paisagem e apagamento da memória urbana, o mesmo não se passaria com o Projeto Porto Maravilha, na segunda década do ano 2000.

3 PORTO MARAVILHA, UM MEGAEMPREENDIMENTO IMOBILIÁRIO BASEADO NA VERTICALIZAÇÃO E NO RODOVIARISMO

A Lei Complementar nº 101 de 23 de novembro de 2009 não apenas autorizava o Poder Executivo a instituir a Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio, como também introduzia modificações no Plano Diretor da Cidade. A despeito da magnitude das implicações de uma lei destinada a modificar o Plano Diretor, que constitui a “carta magna” do município e principal instrumento da política urbana, a Lei Complementar 101 de 2009 não passou pelo crivo de um debate amplo, democrático e transparente. Redigida pelo Executivo Municipal, foi aprovada em regime de urgência por esmagadora maioria de vereadores na Câmara Municipal.

Como referido anteriormente, a Prefeitura apresentou a OUC do Porto Maravilha como parte do conjunto de obras necessária à preparação da cidade para a realização dos Jogos Olímpicos de 2016. Tal estratégia revelou-se extremamente eficaz, permitindo legitimar a “revitalização” da zona portuária como uma prioridade de investimentos públicos. De fato, apenas para a fase inicial da OUC, relativa às obras de infraestrutura do porto, foram destinados 8 bilhões de reais a serem pagos com recursos municipais.

Para Vainer (2011) o Rio de Janeiro estava submetido a um novo tipo de regime urbano, por ele denominado “cidade de exceção”, no qual torna-se regra a invisibilização dos processos decisórios, liberando-os dos entraves decorrentes dos controles políticos e burocráticos. Ainda segundo Vainer:

A cidade de exceção transforma o poder em instrumento para colocar a cidade, de maneira direta e sem mediações na esfera da política, a serviço do interesse privado de diferentes grupos de interesses (2011, p.11).

Mesmo sem pretender pormenorizar aqui o texto da lei, vale um breve comentário sobre as alterações relativas aos novos gabaritos aprovados para a zona portuária.

O Anexo IV delimita a Área de Especial Interesse Urbanístico, sobre a qual incidirá a OUC, em 14 setores que, no Anexo V, aparecem subdivididos em 30 Subsetores. Em seguida, o Anexo V-B, apresenta o QUADRO DE PARÂMETROS URBANÍSTICOS POR SUBSETOR, no qual são indicados o gabarito máximo permitido, taxa de ocupação, Coeficiente de Aproveitamento Básico (CAB) e Coeficiente de Aproveitamento Máximo (CAM) para cada subsetor.

Cabe ressaltar que os subsetores com gabaritos máximos de até 18 metros de altura correspondem ao que estabeleceu a Área de Proteção Ambiental (APA) em parte dos bairros da Saúde, Santo Cristo, Gamboa e Centro, instituída pelo Decreto nº 7.351/1988. Deste modo, de acordo com o Quadro do Anexo V-B, acima referido, dois subsetores permitem gabaritos máximos de 7,5 m e 9,0 metros de altura, que correspondem a uma edificação de até 2 pavimentos; na sequência existem 11 subsetores com gabaritos de 11 metros ou três pavimentos; dois subsetores com gabaritos de 15 metros ou quatro pavimentos; 1 subsetor com gabarito de 18 metros ou cinco pavimentos; a partir daí verifica-se um significativo aumento dos gabaritos máximos permitidos, chegando a 60 metros de altura ou 20 pavimentos em parte de Santo Cristo (subsetores B5, C4 e D3); 90 metros de altura ou 30 pavimentos nas áreas da Saúde, Gamboa e lado par da Av. Presidente Vargas (subsetores A3, B4 e E1); 120 metros de altura ou 40 pavimentos junto à Av. Rodrigues Alves em Santo Cristo e numa área localizada no terreno da Companhia Estadual de Gás – CEG (subsetores C2, D2, E2 e M3); e, finalmente, 150 metros de altura ou 50 pavimentos ao longo da Av. Francisco Bicalho (subsetores C3, D1, M1, M2).

A inédita elevação de gabaritos para os padrões usuais da cidade, tinha por objetivo alavancar a venda dos certificados de potencial adicional de construção (CEPACs), emitidos pelo município. De acordo com Werneck (2017), trata-se de um novo tipo de especulação imobiliária, “financeirizada”.

Como se depreende do Anexo V da referida lei que apresenta a delimitação dos subsetores, os gabaritos mais elevados localizam-se numa faixa praticamente contínua, junto à Av. Rodrigues Alves, que se estende da Praça Mauá até a Av. Francisco Bicalho, atravessando todos os bairros da zona portuária.

Figura 4 – Mapa de Subsetores com os gabaritos máximos permitidos


Fonte: CDURP

A venda das CEPACs como se verificaria mais tarde, estagnou em torno de 10%, não possibilitando de imediato a plena concretização do sonho da “Dubai Carioca”, como passou a ser popularmente chamado o Porto Maravilha. Não obstante o fiasco do modelo de negócios adotado, o impacto provocado pelas torres que chegaram a ser, efetivamente, construídas nos permite atestar o equívoco do projeto, bem como sua incompatibilidade com a paisagem cultural existente na região.

A estratégia de marketing urbano utilizada para atrair os investimentos necessários para o sucesso daquele megaempreendimento imobiliário (travestido de um projeto de “revitalização urbana”) consistiu na criação de um evento extraordinário que atraísse as atenções e o interesse do mercado. A demolição do elevado da Perimetral foi o mote encontrado para alavancar uma massiva propaganda através da grande Mídia e da internet sobre a OUC do Porto Maravilha. Tratava-se de uma intervenção de grande envergadura, destinada a sinalizar a irreversibilidade do processo de remodelação da área, assegurando credibilidade e a segurança necessárias para a adesão do mercado, o que, por sua vez, confirmaria a expectativa de valorização imobiliária dos seus promotores.

A ideia de demolir um viaduto de concreto e aço destinada ao tráfego automotivo, símbolo anacrônico do rodoviarismo e fonte de poluição sonora e atmosférica, conquistou não apenas o mercado, mas também a opinião pública de uma maneira geral. Construiu-se a narrativa de que a perimetral era o grande empecilho à modernização e ao desenvolvimento da zona portuária, representando uma barreira entre a cidade e a Baía de Guanabara. Desta forma, sua demolição passou a ser vista como condição indispensável para o processo de “revitalização urbana” pretendido.


Figura 5 – Implosão Elevado da Perimetral

Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?id=4474034&gt;

A implosão, em etapas, transformou-se num grande espetáculo midiático, filmado e televisionado por vários ângulos diferentes. Ao todo foram demolidos cerca de 5 quilômetros de viaduto, constituído por toneladas de concreto e mais de mil vigas de aço, transformados em poucos segundos em material de demolição, ao custo estimado de 1,5 bilhões de reais[4]. Tratava-se, sem dúvida, de uma bem-sucedida estratégia de marketing urbano.

Poucas vozes se levantaram, na época, em defesa de propostas alternativas à demolição da estrutura do elevado. Destaque-se, entre essas, um estudo preliminar desenvolvido em 2010 por professores e alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, propondo a utilização do elevado para a implantação de um sistema sobre trilhos, mais econômico e sustentável, que aproveitava o trajeto do próprio elevado para interligar o Aeroporto Tom Jobim na Ilha do Governador ao Aeroporto Santos Dumont, no centro do Rio de Janeiro[5]. A proposta foi apresentada à Companhia de Desenvolvimento da Região do Porto – CDURP, que não demonstrou interesse em alterar os planos iniciais da OUC do Porto Maravilha, sendo o primeiro trecho da Perimetral implodido em novembro de 2013.

No lugar do Elevado da Perimetral foi implantada uma via expressa com 6 faixas de rolamento que, conectada a um túnel subterrâneo de cerca de 3,4 km de extensão, interliga a Rodoviária Novo Rio às pistas do Parque do Flamengo, junto ao Aeroporto Santos Dumont. O Túnel Prefeito Marcello Alencar, como foi denominado, constitui uma obra de engenharia monumental, tendo sua construção iniciada antes mesmo da conclusão da demolição do viaduto. O túnel possui duas galerias subterrâneas com três pistas cada uma: a galeria que segue no sentido da rodoviária tem capacidade para 110 mil veículos/dia, enquanto que a galeria no sentido Parque do Flamengo, tem capacidade para receber até 55 mil veículos/dia. Considerado o maior túnel subterrâneo no país, foi construído às margens da Baia de Guanabara, na área de aterro que ampliou as instalações portuárias no início do século XX. O túnel atinge no ponto de maior profundidade a cota de 40 metros abaixo do nível do mar, tendo sido dotado de um sistema de drenagem composto por cisterna com capacidade útil para armazenar 390 mil litros de água e quatro bombas, cada uma com capacidade de retirar 100 metros cúbicos de água por hora, com elevados custos de operação e manutenção[6].


Figura 6 – Via Expressa e Via Binário do Porto

Fonte: desenho do autor sobre imagem Google Earth

Paralelamente à Via Expressa e estendendo-se por 3,5 km, foi implantada a Via Binário do Porto. Como o nome indica, trata-se de uma via dupla, possuindo três faixas no sentido Centro e outras três em direção à Avenida Brasil e Ponte Rio-Niterói, destinadas ao tráfego que cruza a zona portuária. Além de complementar o escoamento do fluxo motorizado realizado pela Via Expressa, a Via Binário permite a distribuição interna do trânsito na Zona Portuária do Rio de Janeiro já que, ao contrário da Via Expressa, ela se encontra conectada com a malha viária existente. Por esta razão, foi também possível utilizar alguns trechos da via para implantar a linha 1 do VLT Carioca que liga a Rodoviária Novo Rio ao Aeroporto Santos Dumont.

Para acessar a Via Binário a partir do Centro foi necessária a construção de um segundo túnel subterrâneo, denominado Túnel Rio 450 anos.  Estendendo-se por 1.480 m, o túnel atravessa o subsolo do bairro da Saúde, desde a Rua Visconde de Inhaúma até a Rua Antônio Lage, junto ao conjunto arquitetônico do Moinho Fluminense. 

Ao atravessar o bairro da Gamboa as duas pistas da Via Binário cruzam um terceiro túnel, o Túnel Arquiteta Nina Rabha, escavado sob o Morro da Saúde. Com 80 metros de extensão, o túnel possui duas galerias destinadas ao tráfego de automóveis. Uma das galerias tem como sentido o bairro da Saúde, enquanto que a outra tem como sentido o bairro do Santo Cristo. O túnel possui ainda uma terceira galeria central, destinada exclusivamente à circulação do VLT.

Figura 7 – Via Binário e Túnel Arquiteta Nina Rabha

Fonte – Google Street View

As obras acima apresentadas constituem, por assim dizer, o conjunto de intervenções principais que estruturaram a OUC do Porto Maravilha. Eles ocorreram sob o pano de fundo de um conjunto de outras intervenções menos destacadas quais sejam a reurbanização de vias existentes, pavimentação, drenagem, sinalização viária, iluminação pública e paisagismo.

A mera apresentação das principais intervenções propostas pela OUC permite constatar um constrangedor descompasso entre o discurso preservacionista usado na propaganda do Porto Maravilha e os reais objetivos perseguidos por seus promotores. Em nome do combate à “cidade do automóvel”, simbolizada pelo Elevado da Perimetral, foi implementado um programa ultra rodoviarista com a implantação de uma Via Expressa que atravessa indiferente uma área histórica importante da cidade, a construção da Via Binário com duas novas pistas para automóveis, além de dois túneis subterrâneos de grande porte e um túnel escavado no Morro da Saúde, que abriga em seu cume a igreja setecentista dedicada a Nossa Senhora da Saúde.

A ampliação do sistema viário da cidade preexistente implicou no alargamento e redesenho de várias ruas da malha urbana existente para absorver o volume de tráfego gerado pela demolição da Perimetral, acarretando a eliminação parcial do traçado urbano original e o desaparecimento de galpões industriais, armazéns portuários e outras edificações que compõem, como registros documentais que são, a memória urbana da zona portuária.

O desventramento do tecido urbano promovido pela OUC do Porto Maravilha cumpriu a função de possibilitar/permitir o surgimento de torres envidraçadas de até 50 andares, formando enclaves corporativos, apartados da cidade envolvente. No entanto, o gigantismo dos empreendimentos não obteve a resposta esperada por parte do mercado. De acordo com pesquisa realizada pela consultoria especializada Cushman & Wakefield, citada pelo jornal OGLOBO de 06/02/2018:

a região portuária registrou taxa de vacância de 83,5% no último trimestre de 2017, mais que o dobro da taxa da cidade do Rio como um todo, que foi de 40,7%. Com muitos escritórios vagos, os preços no Porto estão caindo. De acordo com a consultoria, o preço médio na região caiu 11% em um ano, para R$ 87,7 o metro quadrado[7].

Vale, por fim, destacar que o Condomínio Residencial Porto Vida, único empreendimento habitacional lançado durante as obras da OUC do Porto Maravilha e cuja construção foi iniciada em 2017, permanece até a presente data como um esqueleto de concreto armado, com as obras paralisadas.

4 CANCELAMENTO DA PAISAGEM E ASSÉDIO URBANÍSTICO

Visando ilustrar, segundo a abordagem conceitual aqui proposta, o processo de cancelamento da paisagem urbana e assédio urbanístico na zona portuária do Rio de Janeiro, utilizaremos imagens retiradas do Google Street View, anteriores e posteriores às intervenções implementadas pela OUC do Porto Maravilha, além de outras imagens publicadas na internet.

O primeiro conjunto de imagens mostra a av. Rodrigues Alves antes e depois da derrubada do Elevado da Perimetral. A figura 8-a corresponde a uma foto do Google Street View de novembro de 2011, mostrando o Armazém 10, na Avenida Rodrigues Alves, ainda sob o viaduto. Este armazém integra o conjunto de 18 armazéns portuários que compõem o Cais da Gamboa, inaugurado em 1910, após a conclusão das obras de expansão da zona portuária. Embora construídos na mesma época com a mesma configuração arquitetônica, apenas os armazéns 01, 02, 03, 04, 05, 06 e 07 encontram-se tombados pela municipalidade.

Em acurado estudo sobre a tipologia arquitetônica dos armazéns do Cais da Gamboa, no Porto do Rio, Lima e Mesentier (2020, p. 5) demonstram a importância estratégica da preservação do patrimônio industrial portuário, através do reuso de suas instalações.


Figuras 8-a e 8-b

Fonte – Google Street View

Destaca-se na fachada dos armazéns o beiral suportado por mãos francesas em ferro trabalhado, que além de proteger a área de carga e descarga onde estacionavam os caminhões, constituíam também elementos compositivos de ornamentação da fachada.

Com a implantação da via expressa junto à fachada dos armazéns, como mostra a figura 8-b do Google Street View em maio de 2017, além desses elementos terem sido suprimidos, o próprio acesso aos armazéns pelo lada da cidade foi eliminado.  Os portões originais dos armazéns que se abriam para a Av. Rodrigues Alves, encontram-se inacessíveis. Uma mureta de concreto construída entre a via expressa e os armazéns, se encarrega impedir qualquer possibilidade de acesso. O espaço de cerca de 50 cm entre a mureta e a fachada dos armazéns foi aterrado com entulho de obra e pó de pedra, emparedando permanentemente os portões originais.

À direita na imagem aparece uma das duas torres de 22 pavimentos de escritórios do empreendimento Aqwa Corporate, projetada pelo escritório Norman Foster + Partners.

O segundo conjunto de imagens apresenta uma visada a partir de uma rua perpendicular à av. Rodrigues Alves. Neste caso, utilizou-se como exemplo a Rua de Santo Cristo, numa foto do Google Street View tomada em janeiro de 2010, que mostra o Elevado da Perimetral e ao fundo um dos armazéns do Cais do Porto. A imagem evidencia que, apesar do gigantismo da estrutura de concreto e aço do viaduto e, não obstante, a poluição gerada pelo tráfego de veículos, sua altura permite que se veja o armazém e que se possa mesmo acessá-lo, cruzando por debaixo do Elevado. Quando se observa a cena a partir do mesmo ponto, através da figura 9-b, tomada pelo Google Street View em junho de 2017, já não há o viaduto, mas no seu lugar surge a Via Expressa interditando completamente o acesso aos armazéns. Cai por terra, portanto, a estratégia discursiva que afirmava ser a demolição do Elevado da Perimetral a supressão de uma barreira entre a cidade e a Baía de Guanabara. Ressalte-se ainda que a própria via de onde foram tomadas as fotos se transformou num cul-de-sac, já que não seria possível sua conecção à Via Expressa.


Figuras 9-a e 9-b

 Fonte – Google Street View

A figura 10 demonstra claramente como a Via Expressa representa uma barreira física intransponível entre a cidade e a Baía de Guanabara. Além das seis faixas de rolamento da via, construídas junto aos armazéns do Cais do Porto, uma via de serviço foi implantada entre a via expressa e o tecido urbano dos bairros da zona portuária. A figura não deixa margem para dúvidas com relação ao caráter rodoviarista da OUC do Porto Maravilha.

Figura 10

Fonte: Agência O Globo / foto Márcia Foletto. Disponível em:  <https://oglobo.globo.com/rio/novo-trecho-da-avenida-rodrigues-alves-sera-inaugurado-em-abril-19054337&gt;

Junto ao Armazém 8, a partir da “submersão” da via expressa no túnel subterrâneo, inicia-se o Boulevard Olímpico ou Orla Luiz Paulo Conde, estendendo-se pelo trajeto que antes ficava sob a perimetral, até o Largo da Misericórdia, junto ao Museu Histórico Nacional. Durante as Olimpíadas, no primeiro trecho que vai até a Praça Mauá, onde estão localizados o Museu de Arte do Rio e o Museu do Amanhã, o boulevard foi palco de festas e shows de música com livre acesso ao público, atraindo multidões de espectadores. A figura 11 documenta o tratamento paisagístico recebido pelo Boulevard Olímpico, com vegetação, iluminação e mobiliário urbano, tendo de um lado os Armazéns do Cais do Porto, tombados pelo município e do lado da cidade as fachadas das edificações originalmente voltadas para a Av. Rodrigues Alves. Os armazéns, embora restaurados, não estão abertos ao público, sendo utilizados para eventos privados. As edificações lindeiras ao Boulevard, receberam um tratamento de fachada que consistiu em painéis pintados por artistas convidados. Destaca-se o Painel “Etnias” do artista Kobra, considerado pelo Guiness como o maior mural de grafite do mundo. O reconhecimento da beleza dos murais não elude o fato de que se tratam de um expediente utilizado de forma generalizada para uma pseudo-reabilitação urbana, já que, em sua maioria, os edifícios assim “maquiados” permanecem internamente em avançado estado de degradação.

Figura 11: Boulevard Olímpico

Fonte: Dronestagr. Disponível em <http://www.dronestagr.am/boulevard-olimpico-rio-de-janeiro-brazil/&gt; Acesso em: 03 fev. 2022

As imagens 12-a e 12-b, tomadas pelo Street View, respectivamente, em dezembro de 2016 e novembro de 2021, documentam o desaparecimento de um conjunto de sobrados localizados na Av. Venezuela, próximo ao Moinho Fluminense. Além do evidente valor histórico e arquitetônico, os sobrados abrigavam há mais de três décadas, o Armazém Cultural das Artes, onde artistas, cenógrafos, carpinteiros, entre outros profissionais, produziram os cenários para mais de três mil produções teatrais. Em paralelo, eram oferecidas oficinas de formação técnica especializada, cumprindo a importante missão de transmitir a tradição do ofício para as novas gerações.

O imóvel, pertencente à Cia. Docas do Rio de Janeiro, estava abandonado quando aí se instalou o Armazém Cultural das Artes. Com o início dos trabalhos da OUC Porto Maravilha, o prédio foi cedido à Companhia de Desenvolvimento Urbano (Cdurp) que solicitou a desocupação do imóvel. Na época, segundo informação da própria Cdurp, o terreno já estaria destinado à construção de um complexo residencial com 1.440 unidades. Por três anos, a classe artística tentou, em vão, resistir ao assédio e impedir o cancelamento da história do Armazém Cultural das Artes. Durante as negociações foi apresentado, inclusive, um projeto para a transformação da área na “Cidade do Teatro” num polo cultural idealizado pelo diretor e ator Amir Haddad, destinado a abrigar e desenvolver diversas atividades relacionadas com a produção teatral[8].


Figuras 12-a e 12-b

Fonte – Google Street View

A figura 12-b mostra a demolição integral do conjunto, que se estendeu entre meados de 2017 e início de 2020 e que permanece ainda hoje como um terreno baldio. Aquilo que poderia (e deveria) ter sido tomado como um exemplo bem-sucedido de reabilitação do patrimônio cultural urbano, a ser valorizado e estendido por toda a zona portuária, foi implacavelmente cancelado pela lógica da especulação imobiliária, financeirizada pela negociação das CEPACs, que presidiu a concepção da OUC do Porto Maravilha.

Os exemplos dos equívocos cometidos se sucedem por toda a área, não sendo possível aqui documentá-los de forma exaustiva. Passemos ao processo de hiper-verticalização apenas iniciado no Porto do Rio.


Figuras 13-a e 13-b

Fonte – Google Street View

A figura 13-a, tomada em agosto de 2014 mostra a Av. Barão de Tefé no bairro da Saúde, tendo à direita a fachada do Galpão da Cidadania, antigo Armazém das Docas de D, Pedro II, e à esquerda a Praça Jornal do Comércio, onde, durante as obras de infraestrutura da OUC do Porto Maravilha, foram encontrados os vestígios arqueológicos do antigo Cais do Valongo. O Galpão da Cidadania pode ser considerado outro bom exemplo de reabilitação do patrimônio industrial presente na zona portuária. Cedido em 2003 pelo governo Federal para abrigar a ONG Ação pela Cidadania, o edifico recebeu um projeto do arquiteto Helio Pellegrino, conservando suas características arquitetônicas, ao mesmo tempo em que possibilitava o aproveitamento dos espaços internos para as atividades da ONG.

A figura 13-b, tomada em junho de 2021, mostra, à esquerda, as escadarias de acesso ao Sitio Arqueológico do Cais do Valongo e, ao fundo, o surgimento de duas torres corporativas, totalmente envidraçadas, ambas com 22 pavimentos e 90 metros de altura.

A torre da direita é o edifício sede da empresa multinacional de cosméticos L’Oreal, inaugurado em 2017. A torre da esquerda é o edifício de escritórios Vista Guanabara, um dos mais modernos e arrojados edifícios do Porto Maravilha. Inaugurado em junho de 2016, seus primeiros inquilinos foram a financeira italiana Assicurazioni Generali e a Casa Granado. A partir de então, amargou uma elevada taxa de vacância até finais de 2018 quando, em razão da queda generalizada nos preços, foram alugadas duas lajes corporativas para a instituição financeira sino-brasileira Bocom/BBM e seis para a AMIL.


Figura 14

Fonte: Agência O Globo / foto Márcia Foletto. Disponível em: <https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/sao-paulo-do-financeiro-rio-do-petroleo-e-gas.html> Acesso em: 12 jan. 2022

A figura 14 mostra outra visada das torres corporativas da L’Oreal e Vista Guanabara, com os armazéns do Cais do Porto em primeiro plano.  Dispensando maiores comentários, a fotografia registra de forma eloquente os impactos negativos produzidos pela OUC do Porto Maravilha na paisagem urbana da zona portuária.

As imagens que se seguem correspondem a dois complexos corporativos que enfrentaram dificuldades em função da baixa ocupação que se abateu sobre a região portuária. A figura 15 mostra as três torres do Porto Atlântico com 16 andares e 60 m de altura cada uma. Um dos prédios abriga o Novotel Porto Maravilha, os outros dois são blocos empresariais de escritórios para locação. Segundo o administrador do Porto Atlântico Marco Cardoso[9], em agosto de 2019, os blocos de escritórios registraram apenas 7% de ocupação. No início de 2020, antes da pandemia de COVID-19, uma pequena recuperação elevou essa taxa para 12%.


Figura 15 – Empreendimento Porto Atlântico

Fonte: Agência O Globo / foto Brenno Carvalho / Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/zona-portuaria-uma-regiao-de-contrastes-24210821&gt; Acesso em: 12 jan. 2022

A figura 16 mostra um ambicioso empreendimento desenvolvido pela Tishman Speyer no Porto Maravilha. Trata-se do Aqwa Corporate, projetado pelo renomado escritório Norman Foster+Partners, como já referido anteriormente. O complexo previa, originalmente, a construção de duas torres envidraçadas de 22 andares e 90 metros de altura. No entanto, somente uma das torres foi construída, sendo inaugurada em 2017 com muitos andares ainda desocupados. Para tentar atrair a atenção do mercado, o CASACOR 2017 foi instalado na cobertura, enquanto uma exposição sobre a “revitalização da zona portuária” ocupava o nono andar do edifício. Os sinais de recuperação só viriam a partir de 2021 com o anúncio da chegada da o Icatu Seguros e a Enel Brasil, além da diretoria da Caixa Econômica Federal, que alugou três andares do edifício.


Figura 16: Empreendimento Aqwa Corporate

Fonte: CDURP. Disponível em:< http://portomaravilha.com.br/portoatlantico&gt; Acesso em: 03 fev. 2022

Por fim, as imagens seguintes contemplam o mais recente lançamento imobiliário na zona portuária do Rio de Janeiro, ocorrido em junho de 2021. Trata-se do primeiro empreendimento residencial da zona portuária, efetivamente construído, desde o início dos trabalhos da OUC do Porto Maravilha. Chamado de Rio Wonder Residences (numa alusão caricatural ao Porto Maravilha), o empreendimento marca o retorno de investimentos do mercado imobiliário na região portuária através da compra de Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs). A primeira fase do empreendimento comercializou 470 unidades habitacionais, denominadas de studios, de 1 e 2 quartos. Na sequência, serão oferecidas mais duas fases totalizando três torres de vinte andares e 1.224 apartamentos.


Figuras 17-a / 17-b – Empreendimento Rio Wonder Residences

Fonte: Cury Construtora. Disponível em: <https://cury.net/imovel/RJ/centro/cury-rio-wonder-residences-maua&gt; Acesso em: 03 fev. 2022

Com uma arquitetura de qualidade duvidosa, implantado sem contato com o tecido urbano envolvente, isolado em si mesmo, o empreendimento reproduz a lógica condominial privatista e antiurbana, como se um condomínio fechado de classe média da Barra da Tijuca tivesse sido, inapropriadamente, transladado para o bairro de Santo Cristo, numa completa indiferença aos padrões tipológicos historicamente presentes na zona portuária.


Figuras 18-a / 18-b: Lançamento Rio Wonder Residences

Fonte: CDURP. Disponível em: <http://portomaravilha.com.br/noticiasdetalhe/5180-prefeito-lanca-primeiro-residencial-do-porto-maravilha&gt; Acesso em: 03 fev. 2022

Nas figuras 18-a e 18-b, o prefeito que esteve à frente da OUC do Porto Maravilha entre os anos de 2009 e 2016, retorna ao executivo municipal, reeleito em 2021, e comparece ao stand de vendas do Rio Wonder, celebrando de viva voz mais um grave equívoco urbanístico cometido contra a cidade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escolha da cidade do Rio de Janeiro, em 2009, como sede dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016 inaugura um período de grandiosos investimentos de infraestrutura urbana para a modernização da cidade. De acordo com a Matriz de Responsabilidade Olímpica, divulgada pelo Ministério dos Esportes, em conjunto com o Governo do Estado e a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, o montante investido alcançou, como já referido, a casa dos 40 bilhões de reais. Diante da perspectiva de abocanhar tão volumosos recursos em tão curto espaço de tempo, um reduzidíssimo grupo formado pelas maiores empreiteiras do país passou a disputá-los com furiosa avidez. Organizadas em consórcios privados, as grandes empreiteiras se apressaram na partilha dos recursos previstos e na imposição à administração pública de um bilionário elenco de obras a serem implementadas. Tais empreendimentos possuíam, como era de se esperar, um caráter eminentemente arbitrário, atendendo, sobretudo, aos interesses da especulação imobiliária e financeira (que desde há muito, andam juntas e irmanadas).

Como reação à investida dos interesses do poder econômico, caberia à Prefeitura assumir a tarefa de definir, através dos canais de participação democrática da sociedade, as reais prioridades para os investimentos, exercendo o seu papel de mediação entre os vários interesses em jogo. Seria esta uma oportunidade excepcionalmente favorável para que, à luz das diretrizes de planejamento urbano apontadas pelo Plano Diretor, a cidade do Rio de Janeiro pudesse enfrentar os problemas historicamente acumulados e promover o desenvolvimento urbano, com vistas à construção de uma cidade socialmente mais justa e ambientalmente mais responsável.

Infelizmente, no caso da OUC Porto Maravilha, como visto ao longo deste trabalho, prevaleceu a lógica da “cidade de exceção” de que nos fala Vainer:

As formas institucionais de democracia representativa burguesa permanecem, formalmente, operantes. O governo eleito governa, o legislativo municipal legisla… Mas a forma como governam e legislam produz e reproduz situações e práticas de exceção, em que poderes são transferidos a grupos de interesse empresarial (2011, p.11).

A Operação Urbana Consorciada do Porto Maravilha significou, na prática, a “terceirização” da própria gestão do espaço urbano da zona portuária da cidade. Com base na lei que criou a OUC do Porto Maravilha, o “projeto”, supostamente destinado à “revitalização urbana” da zona portuária, foi apresentado pelo consórcio empresarial concessionário e imposto de cima para baixo, sem passar pelo crivo de um debate democrático e, portanto, sem qualquer possibilidade de contestação por parte dos moradores e trabalhadores da região.

Revirada por tratores, bulldozers e retroescavadeiras e, ainda, devastada por toneladas de explosivos utilizados para implosão do Elevado da Perimetral, a “nova” zona portuária que surge dos escombros, deliberadamente produzidos pelas obras do Porto Maravilha, é uma cidade fantasma, sem moradores e sem vitalidade urbana. Escavada por quilométricos túneis subterrâneos, a zona portuária foi rasgada por três grandes vias de alta velocidade, impiedosamente pavimentadas com asfalto, que descaracterizaram de forma irreversível a fisionomia urbana e o tecido urbano preexistente. Tais resultados permitem à cidade do Rio de Janeiro ostentar hoje o título, tão patético quanto nefasto, de ser, talvez, a última das grandes metrópoles do planeta e investir maciçamente num programa ultra rodoviarista em pleno século XXI.

Induzidas e estimuladas pelos novos parâmetros urbanísticos aprovados pela legislação da OUC do Porto Maravilha, altíssimas torres de vidro passam a povoar ruidosamente a paisagem urbana da zona portuária. Construídas isoladas e apartadas do tecido urbano, constituem verdadeiros enclaves condominiais corporativos ou residenciais, afirmando um modo de vida anti-urbano que privilegia a propriedade privada individual em detrimento da apropriação coletiva dos espaços públicos.

Tal é, como se pretendeu demonstrar neste trabalho, a lógica empresarial que presidiu a concepção do Projeto “Porto Maravilha” e que perpetrou um verdadeiro desastre urbanístico e ambiental, repetindo modelos já testados no passado e cujos resultados não se mostraram acertados ou minimamente sustentáveis.

Trata-se, sem meias palavras, de um caso de assédio urbanístico exercido pelo poder econômico sobre a cidade e seus moradores, caracterizado pela imposição autoritária de interesses privados sobre o bem comum. Suas consequências se traduzem em graves e continuados prejuízos econômicos, sociais e culturais, entre os quais destacamos o cancelamento da paisagem urbana e o apagamento da memória histórica da zona portuária do Rio de Janeiro, escrita coletivamente por gerações de moradores/trabalhadores e testemunhada pelo seu acervo arquitetônico e industrial.

Por fim, relembramos David Harvey, quando afirma: (…) o neoliberalismo transformou as regras do jogo político. A governança substituiu o governo; os direitos e as liberdades têm prioridade sobre a democracia; a lei e as parcerias público-privadas, feitas sem transparência, substituíram as instituições democráticas; a anarquia do mercado e do empreendedorismo competitivo substituíram as capacidades deliberativas baseadas em solidariedades sociais (…) A criação de novos espaços urbanos comuns [commons], de uma esfera pública de participação democrática, exige desfazer a enorme onda privatizante que tem servido de mantra ao neoliberalismo destrutivo dos últimos anos (…) O direito à cidade não é um presente. Ele tem de ser tomado pelo movimento político (2013, pp. 76-81).

6 AGRADECIMENTOS

Esta pesquisa contou com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).

7 REFERÊNCIAS

CARLOS, Claudio Antonio S. Lima. Um Olhar Crítico sobre a Zona Portuária da Cidade do Rio de Janeiro In: Bitacora 17 (2) 2010: 23 – 54. Universidad Nacional de Colombia, Bogotá. Disponível em:  https://revistas.unal.edu.co/index.php/bitacora/article/download/18892/19783/61540. Acesso em 02 jan.2022

CHIAVARI, Maria Pace. Genealogia de uma empresa: de Gianelli & Cia a S.A. Moinho Fluminense. In: Moinho Fluminense Memoria. Autonomy Investimentos. Rio de Janeiro: Automática Edições, 2021. Disponível em: https://moinho.cargo.site/Genealogia-de-uma-empresa-de-Gianelli-Cia-a-S-A-Moinho-Fluminense. Acesso em: 03 fev. 2022.

DUARTE, Cristovão Fernandes. Jogos Olímpicos Rio-2016: a democratização da gestão pública do espaço urbano como um legado (possível/impossível) a ser conquistado pela população da cidade. Biblio 3W – Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales; Universidad de Barcelona; Vol. XV, nº 895.

HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil / Ermínia Maricato… [e tal.]. – 1.ed. – São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013.

HONORATO, Cláudio de Paula. Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro, 1758 a 1831. 2008. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2008_HONORATO_Claudio_de_Paula-S.pdf Acesso em: 10 jan. 2022

IPHAN. Sítio arqueológico Cais do Valongo: proposta de inscrição na lista do Patrimônio Mundial. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_Cais_do_Valongo_versao_Portugues.pdf Acesso em: 03 fev. 2022.

LIMA, Evelyn Furquim Werneck; MESENTIER, Leonardo Marques de. O patrimônio industrial na área portuária do Rio de Janeiro: uma proposta de conservação e reuso. In: IV ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO, 2021, Brasília. Anais […]. Brasília: FAU-UnB, 2021. v. 4. p. 654-672.

SEGRE, Roberto e Ortiz, D. Praça Mauá: um portal dinâmico da Cidade Maravilhosa In: Os espaços públicos nas políticas urbanas: leituras sobre o Rio de Janeiro e Berlim / organização Lilian Vaz. – Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

VAINER, Carlos B. Cidade de Exceção: Reflexões a partir do Rio de Janeiro. In:  XIV ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PLANEJAMENTO URBANO, 2011, Rio de Janeiro. Anais […]. Rio de Janeiro: ANPUR, 2011.  vol. 14, 2011. Disponível em: http://anais.anpur.org.br/index.php/anaisenanpur/article/view/635. Acesso em 02 jan. 2022

VASCONCELLOS, L.M. e SILVA, D.S.C.P. A caixa que faz cidade, a conteinerização de áreas portuárias. In: XIII ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PLANEJAMENTO URBANO, 2009, Florianópolis. Anais […]. Florianópolis: UFSC, 2009.

WERNECK, Mariana da Gama e Silva. Os infames termos aditivos e o mico do Porto Maravilha. In: Artigos Semanais. Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles, 30 mar. 2017. Disponível em< https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/falacia-do-porto-maravilha-ppps-cepacs-e-o-onus-para-o-poder-publico/&gt; Acesso em: 12 jan. 2022


[1] A escolha do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016 foi anunciada pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) em Copenhague, no dia 02/10/2009.

[2] De acordo com dados do Portal Rio Transparente (http://riotransparente.rio.rj.gov.br/) para o ano de 2010, o PIB carioca foi da ordem de 150 bilhões de reais, enquanto o total da arrecadação municipal atingiu a marca de 15 bilhões de reais.

[3] Desativado, o cemitério foi encoberto pela malha urbana. Somente em 1996, o Cemitério dos Pretos Novos foi redescoberto, revelando sua localização. No local está instalado o Instituto dos Pretos Novos (IPN). Disponível em: <http://www.pretosnovos.com.br&gt;. Acesso em: 3 jan. 2022.

[4] A estimativa de custo da demolição da Perimetral foi tirada do Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU: 007672/2012-8) acerca da demolição do Elevado da Perimetral. Disponível em: <https://tcu.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/315879484/767220128/inteiro-teor-315879604?ref=topic_feed> Acesso em: 12 jan. 2022

[5] De acordo com a equipe da UFRJ, o custo estimado para a implantação do monotrilho equivaleria ao custo da demolição do elevado. O estudo preliminar previa a construção de estações de passageiros ao longo do percurso, além da criação de parques lineares suspensos em pontos específicos. Disponível em <http://novaperimetralrio.blogspot.com/&gt; Acesso em: 2 jan. 2022

[6] Disponível em: < http://www.portomaravilha.com.br/conteudo/imprensa/COLETIVA_FINAL.pdf   Acesso em: 12 jan. 2022

[7] Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/predio-na-zona-portuaria-do-rio-vendido-apos-tres-anos-vazio-22368638&gt; Acesso em: 12 jan. 2022

[8] Disponível em: < https://oglobo.globo.com/cultura/teatro/ha-35-anos-na-zona-portuaria-armazem-cultural-das-artes-tenta-reverter-pedido-de-desocupacao-16772957&gt;. Acesso em: 03 fev. 2022.

[9] Disponível em :< https://oglobo.globo.com/rio/zona-portuaria-uma-regiao-de-contrastes-24210821&gt; Acesso em: 12 jan. 2022

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NOTA: artigo originalmente publicado conforme referência a seguir:

DUARTE, C. F. . Paisagem cancelada e assedio urbanistico: o caso do Porto Maravilha no Rio de Janeiro. In: Marta Enokibara, Sandra Medina Benini, Geise Brizotti Pasquotto. (Org.). Paisagem: Pesquisa histórica e aplicada no Brasil e América Latina. 01ed.Bauru: ANAP, 2022, v. 01, p. 43-58.

O movimento das cidades no tempo: o bulevar, a rodovia e a nebulosa

novembro 12, 2022

Evitar a confusão numa continuidade ilusória,

bem como as separações ou descontinuidades

absolutas, esta é a regra metodológica.

Henri Lefebvre

(1991 [1968], p. 52)

Introdução

Segundo Habermas, os problemas colocados pela cidade contemporânea ao planejamento urbano não se reduzem mais às questões do desenho ou à organização dos espaços. A cidade, a partir do século XIX, torna-se “ponto de interseção de relações funcionais” abstratas, enfeixadas porconexões sistêmicas não configuráveis”, sem visibilidade, que “não podem mais alcançar uma presença esteticamente apreensível(1987, pp. 122-3). Enquanto as funções da vida urbana podiam sertraduzidas em fins, em funções de utilização temporalmente regulada dos espaços configurados(op. cit., p. 123), a cidade era formalmente constituída e representada para os sentidos. A perda ou diminuição da capacidade de apreender a configuração da cidade e interagir diretamente com o ambiente, através dos sentidos, constitui um fenômeno contemporâneo, cujos impactos sobre os mundos da vida impõem, como pretende Habermas, uma revisão dos velhos conceitos sobre a cidade: as aglomerações urbanas emanciparam-se do velho conceito de cidade, ao qual no entanto se apega o nosso coração(op. cit., p. 122).

As idéias acima apresentadas encontram-se na conferência “Arquitetura moderna e pós-moderna”, proferida por Habermas por ocasião da abertura da exposição “A Outra Tradição – Arquitetura em Munique de 1800 à Atualidade”, em novembro de 1981. A platéia, formada majoritariamente por estudantes e professores de arquitetura e urbanismo, assistiu a exposição dos argumentos do ilustre palestrante a cerca da radicalidade e da irreversibilidade das transformações impostas ao meio urbano a partir do advento do processo de industrialização, tendo como pano de fundo uma de suas teses acerca da modernidade, qual seja, a de um projeto de modernização incompleto e, portanto, ainda em curso na contemporaneidade (Ibid., 1992).

Para muitos autores, os impactos produzidos a partir do processo de modernização introduziram um divisor de águas na história do urbanismo, contrapondo, por assim dizer, a cidade industrial ou moderna à cidade tradicional ou pré-industrial. Tal distinção fundamenta-se, basicamente, na introdução da racionalidade industrial na produção do espaço urbano no século XIX, quando se consolidam as bases materiais para o surgimento de uma nova cultura urbana, associada a uma nova escala de cidade.

O distanciamento histórico nos permite hoje tentar compreender as transformações urbanas decorrentes da revolução industrial como um processo histórico formado por três momentos distintos e sucessivos, através dos quais se processou três grandes rupturas sobre a configuração espacial das cidades. Como ondas se propagando em sequência e produzindo a cada arrebentação uma nova ruptura, ou um aprofundamento das transformações ocorridas anteriormente. O primeiro corresponde à remodelação de Paris, empreendida pelo prefeito George-Eugène Haussmann em meados do século XIX, logo tornada um modelo paradigmático de como deveriam ser enfrentado os desafios colocados para a cidade moderna. O segundo estaria compreendido pelo advento do Movimento Moderno no século XX, concomitante ao aparecimento do automóvel particular no meio urbano. O terceiro momento inicia-se já a partir das últimas décadas do século XX, estendendo-se até os dias de hoje, com a consolidação do modelo das nebulosas ou urbanização dispersa.

Na sequência serão apresentadas as ondas acima referidas, tendo como objetivo analisar os impactos sobre a forma urbana a cada nova ruptura produzida. A estratégia teórico-metodológica adotada terá como foco as alterações verificadas sobre a sintaxe espacial urbana das cidades, entendida no âmbito da abordagem aqui pretendida como sendo, basicamente, as relações de interdependência estabelecidas entre os elementos estruturantes da forma urbana, quais sejam o lote, a rua e a quadra (SANTOS, 1988, p. 67) e as práticas socioespaciais cotidianas.

Por fim, a partir dos resultados obtidos nesta etapa da pesquisa e, ainda, tendo por inspiração o modelo da modernidade como um “projeto inacabado” sugerido por Habermas, propor-se-á, a título de reflexões para o debate, que as três ondas estudadas devem ser compreendidas conjuntamente, à luz da dialética estabelecida entre os processos de continuidade e ruptura. Elas, as ondas, constituiriam momentos-chave (do ponto de vista das novas configurações espaciais assumidas pela cidade) de um mesmo processo contínuo/descontínuo de destruição/superação da sintaxe espacial urbana da cidade tradicional. Nesse sentido, o fenômeno da urbanização dispersa poderia ser entendido menos como algo novo que se anuncia e mais como continuidade e, ao mesmo tempo, radicalização dos processos de modernização iniciados a partir da revolução industrial e ainda vigente na contemporaneidade.

A cidade preexistente às ondas de modernização

Desde os primórdios da civilização urbana até o surgimento da locomotiva a vapor no século XIX, os deslocamentos se faziam na velocidade do caminhar ou à força da tração animal, empregada no transporte de pessoas e cargas. A manutenção deste estágio de desenvolvimento tecnológico com relação à velocidade dos deslocamentos, durante milhares de anos, produziu uma relativa invariância na configuração geométrica dos tecidos urbanos utilizados por diversas culturas ao longo da história (DUARTE, 2006, p. 46). As funções urbanas destinadas ao atendimento das necessidades básicas da vida cotidiana forneciam, então, as escalas adequadas para o agenciamento e dimensionamento do desenho de ruas, lotes, quadras e praças. Na cidade tradicional ou pré-industrial, a interdependência entre as partes constitutivas da forma urbana, representada pela articulação entre a edificação e o lote, do lote edificado com a rua, da rua com a quadra, da praça com as ruas e quadras à sua volta, das quadras entre si e com o todo, assegurava elevados graus de legibilidade e continuidade espaciais dos tecidos urbanos. Aí, as práticas socioespaciais cotidianas ainda podiam ser temporalmente reguladas nos espaços de convivência e sociabilidade espacialmente configurados, tal como nos sugere Habermas na citação apresentada no iníciodeste artigo. Desta articulação comunicante das partes entre si e com o todo resulta uma sintaxe espacial que, associada às praticas socioespaciais dos moradores e usuários da cidade, caracteriza o tecido urbano que comumente associamos à cidade tradicional, não obstante as variações de ordem econômica, social e cultural verificadas entre as cidades ao longo de tão largo período histórico.

O dimensionamento das vias, sejam em cidades planejados ou de lenta maturação no tempo, sem traçados pré-concebidos, apresentam até inícios do século XIX, medidas relativamente semelhantes. De acordo com Harouel, nas ruas estreitas e tortuosas das cidades antigas como Atenas as ruas mais importantes não ultrapassam quatro ou cinco metros e são ligadas por vielas de um e meio a três metros de largura. Mesmo nas cidades da Grécia Antiga, projetadas com plano ortogonal, a largura das ruas variam de quatro a cinco metros, com exceção de algumas vias principais, com sete ou oito metros. Na Paris romana, por exemplo, o cardo principal (rua Saint-Jacques) tem nove metros, enquanto as ruas secundarias teriam em torno de seis metros de largura. Durante a Idade Média, muitas das ruas de Paris não ultrapassavam a largura de dois metros, enquanto que as vias das cidades projetadas, como as bastides medievais, poderiam atingir oito ou dez metros (1990 [1985], pp. 17, 25 e 41).

Vale insistir que a manutenção dos padrões tecnológicos dos deslocamentos na cidade tradicional associada ao agenciamento de escalas espaciotemporais de convivência urbana, destinadas a satisfazer a prática continuada dos encontros e das trocas entre os moradores, forneceriam a base explicativa não apenas para a relativa invariância da escala urbana verificada entre diferentes cidades, como também, e por decorrência, com relação ao dimensionamento da largura das vias, do lote edificado, das quadras e praças.

Primeira onda: das vielas ao bulevar

Faz cem anos que a primeira locomotiva arrastou um trem

de vagões sobre uma via férrea que unia uma cidade a outra,

introduzindo assim nas relações e nos transportes  uma modificação

 da duração, de fato, uma velocidade que aumentaria sem cessar, estendendo seus efeitos à totalidade das atividades humanas.

Le Corbusier

(1967 [1946], p.30)

A complexidade dos problemas colocados para a sociedade do século XIX, a partir do advento da revolução industrial, não encontra precedentes históricos equivalentes. As forças emancipadoras e antitradicionalistas, liberadas pelo Iluminismo, eclodem como um turbilhão, alterando profundamente os modos de vida até então conhecidos:

“A dessacralização das visões de mundo tradicional e a racionalização do processo produtivo, incorporando avanços da ciência e da técnica, produziram um sentimento de poder ilimitado em relação ao meio físico e à capacidade de mobilização das energias sociais” (DUARTE, 2006, p. 60).

A necessidade de expansão dos mercados em escala mundial imprimiu um caráter internacional à produção e ao consumo, pavimentando o caminho para a consolidação do capitalismo industrial. Se prevaleceram as razões econômicas, na verdade, foi na esfera da cultura urbana que se processou a grande ruptura nos modos de encarar a vida nas cidades. A fulgurante aparição da locomotiva a vapor nas cidades do século XIX e a revolução da rede de transportes que se seguiu, não deixavam dúvidas sobre a amplitude das transformações por elas anunciadas. Tais transformações iriam impactar de forma radical a configuração espacial dos tecidos urbanos tradicionais, introduzindo uma nova escala de cidade.

O rápido crescimento populacional e a expansão das grandes capitais do século XIX, fez germinar uma nova consciência urbana ligada às questões ambientais. As elevadas taxas de densidade urbana suscitaram o argumento higienista e a introdução de medidas saneadoras como a implementação das redes de abastecimento e esgotamento, a ampliação de áreas verdes livres e ruas cada vez mais largas.

As novidades se fizeram sentir primeiro em Paris e estiveram a cargo do prefeito Haussmann que, entre os anos de 1853 e 1870, implementou um ambicioso programa de remodelação urbana. Tratava-se de construir a imagem de uma capital moderna, superando os entraves da malha viária acanhada e estreita, bem como a fisionomia envelhecida e insalubre da Paris medieval.

O plano foi estruturado a partir da aberturas de grandes e novas avenidas que ficariam conhecidas como os bulevares parisienses. Estendendo-se por quilômetros em linha reta e medindo de 30 a 70 metros de largura, os bulevares constituíram um novo símbolo da vida urbana cosmopolita.  De acordo com Berman, reside nesta criação “a mais espetacular inovação urbana do século XIX, decisivo ponto de partida para a modernização da cidade tradicional” (1986 [1982], p. 145). Pelas novas e largas avenidas deveria circular o ar puro e a luz solar que assegurariam a salubridade da vida urbana, mas também as pessoas e as carruagens, prenunciando o fenômeno das multidões, registrado pelos poetas, cronistas e pintores da época.

Pode-se descrever a remodelação de Paris como uma espécie de desventramento do coração da velha cidade medieval, cortado por vias arteriais que permitiam deslocamentos de um extremo ao outro em linha reta, com surpreendente rapidez. A renovação urbana implicou na derrubada de centenas de edifícios com o deslocamento milhares de pessoas, na destruição de bairros inteiros com séculos de existência.

As novas avenidas e bulevares são introduzidas como uma sistema de “irrigação arterial”, sobreposto à malha da cidade preexistente. A partir de então duas malhas urbanas de escalas distintas passam a conviver e se comunicar, funcionando como um só sistema de circulação de pessoas, bens e veículos.

A tipologia dos bulevares parisienses, com suas calçadas largas e arborizadas, só se completava com a edificação das suas margens que funcionavam como fachadas urbanas voltadas para o centro da nova via. Aí nos bulevares, então apinhados de gente, se desenrolaria o novo espetáculo da vida pública. A reconstrução implicou, portanto, numa espécie de reconciliação arquitetônica ou unificação urbanística entre os novos setores e os setores remanescentes da velha cidade. Surge um novo tipo de espaço que não se apresenta totalmente dissociado do espaço antigo.

Os novos edifícios são construídos alinhados com a testada do lote e geminados com as edificações lindeiras, formando, tal como na cidade tradicional, quadras fechadas e compactas. As fachadas ecléticas das novas avenidas e bulevares, formadas pelo enfileiramento contínuo das edificações, replicam numa escala ampliada a mesma sintaxe espacial que articula as partes entre si e com o todo, assegurando a continuidade do tecido urbano.

            Vemos assim que, nos seus primórdios, a cidade moderna estabelece, em meio às grandes transformações produzidas, uma solução de compromisso com a forma da cidade pré-industrial. A cidade preexistente, sobre a qual se opera a remodelação, resiste ao se transformar.

Segunda onda: do bulevar à rodovia

 O signo distintivo do urbanismo oitocentista foi o bulevar,

 uma maneira de reunir explosivas forças materiais e humanas;

 o traço marcante do urbanismo do século XX tem sido a rodovia,

 uma forma de manter separadas essas mesmas forças.

Marshall Berman

(1986 [1982], p. 159)

A “segunda onda” terá como marco inaugural o aparecimento do automóvel particular na cidade. Embora o motor a explosão, que permitiu o desenvolvimento do automóvel, seja uma invenção do século anterior, a presença do automóvel no meio urbano somente se faria notar a partir das primeiras décadas do século XX. Aliando velocidade e agilidade, a chegada do novo “intruso” foi saudada pelos moradores das cidades como uma das mais surpreendentes conquistas do progresso tecnológico dos tempos modernos. Ao contrário do trem e do o metrô que necessitavam, para seu funcionamento, da construção de vias tecnicamente especializadas e, ao mesmo tempo, exclusivas e segregadas, o novo veículo podia circular livremente pelas ruas existentes na cidade, sem maiores investimentos em infraestruturas apropriadas.

Comandado pelo motorista, que decidia livremente por que rua seguir, essa nova máquina de circular não parecia conhecer obstáculos ao seu deslocamento pela cidade. Livre dos percursos e horários preestabelecidos do transporte público, os automóveis tomaram de assalto as ruas da cidade. A sensação de liberdade e poder associados ao ato de dirigir fizeram do automóvel a ferramenta de circular, por excelência do homem moderno.

Os avanços tecnológicos que se sucederam introduziram aperfeiçoamentos elevaram a potência do motor e o conforto dos passageiros, enquanto a produção em série reduzia progressivamente o custo dos automóveis. Assim, cada vez mais numerosos e velozes, os automóveis expulsaram das ruas as pessoas, agora rebaixadas à condição de pedestres.

O ineditismo do fenômeno do tráfego motorizado, bem como seus impactos sobre as cidades, é rapidamente percebido por Le Corbusier que anuncia a morte da cidade tradicional como conseqüência inexorável da Era da Máquina, abrindo caminho para o nascimento de uma sociedade verdadeiramente moderna. Para além do conceito da “casa como a máquina de morar”, Corbusier propõe a “rua como uma máquina para produzir tráfego” (Apud. Berman, 1986 [1982], p. 161).

Com a criação dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAM (a partir de 1928) e, em especial, com a publicação, em 1943, da Carta de Atenas (resultante do CIAM de1933), da qual Corbusier foi inspirador e signatário, o pensamento urbano modernista difunde-se pelo mundo de forma hegemônica, postulando, entre outras coisas: o desprezo pela cidade antiga; a abolição da rua, considerada anacrônica e perigosa; a exigência para que os imóveis fossem implantados longe dos fluxos de circulação; e a proposição do zoning funcional, adotado em larga escala pela grande maioria das cidades do mundo.

Ao final da Segunda Guerra Mundial é publicada em Paris o livro-manifesto “Manière de penser l’urbanisme”, em cuja abertura Corbusier escreve:

“Escombros por todas as partes sobre uma civilização superada. Uma realidade prodigiosa: o poder das máquinas que proporcionam abundância e os próprios meios de sua distribuição. Retorno ao passado ou aceitação do desenvolvimento natural das coisas: é necessário optar por um ou outro. Tudo está disponível, todos os poderes: as máquinas, transporte, organização industrial, administração, ciência aplicada. Tudo preexiste. A tarefa consiste em arrancar a sociedade moderna da incoerência, de conduzi-la à harmonia. O mundo tem necessidade de harmonia e de ser guiado por harmonizadores.” (1967 [1946], p. 10)

Corbusier se apresenta como um guia clarividente que reconciliaria de forma harmônica a cidade industrial e a sociedade moderna. Contudo, suas propostas de redesenhar a cidade em função dos fluxos de circulação motorizada resultaram no superdimensionamento das vias e no esvaziamento do espaço publico, bem como na verticalização das novas construções, acarretando mudanças na escala de convivência urbana. Os sinais mais visíveis desta transformação consistiram na redução das caçadas para ampliar a área destinada ao tráfego, sinalização, semaforização e recapeamento asfáltico das vias, construção de estacionamentos, vias expressas e viadutos mediante a desapropriação e destruição do patrimônio edificado (DUARTE, 2006, p. 70). A tecnificação generalizada do ambiente construído acabou por restringir significativamente as possibilidades de uso das ruas, com a produção de um espaço público hostil e sem vitalidade.

O resultado da aplicação indiscriminada deste modelo de caráter rodoviarista preconizado pelo urbanismo modernista, principalmente após a Segunda Grande Guerra, encontra sua mais perfeita tradução na denominação “cidade do automóvel” (derivada da expressão inglesa car oriented citties). A aceleração dos fluxos, diminuindo a duração dos deslocamentos fez a cidade crescer exponencialmente, expandindo-se sobre o território circundante.

Com relação à forma da cidade preexistente, analisada à escala das práticas socioespaciais cotidianas, as transformações operadas produziram uma completa desarticulação entre o lote, a rua e a quadra, alterando radicalmente as lógicas estruturantes do tecido urbano. O lote edificado assume novas configurações, com a edificação se descolando não apenas da testada, mas também das divisas laterais, se afastando das edificações vizinhas. Ao se isolar dentro do lote e se desconectar do entorno imediato, um abismo se instala entre o edifício e a cidade. De modo análogo, a massiva presença dos fluxos motorizados no leito das vias, dificultando a travessia dos pedestres, criou a sensação de um progressivo distanciamento entre um lado e outro da rua, bloqueando a livre fruição do espaço, bem como as articulações funcionais e comunicativas até então disponíveis nos tecidos urbanos. A verticalização dos edifícios, associada à nova escala assumida pelas malhas urbanas, rompe o liame tradicionalmente estabelecido entre a rua e a moradia, produzindo uma espécie de exílio voluntario dentro da própria cidade. Morar no décimo ou no vigésimo andar de um edifício significa assumir uma condição de morar, por assim dizer, “fora da cidade”, de abandono da rua e, consequentemente, uma capitulação da vida urbana (SENNETT, 1988 [1976], p. 27).

A sintaxe espacial urbana formada por partes articuladas entre si e com o todo, dá lugar ao espaço abstrato, coercitivo e violento, resultante da submissão da cidade à racionalidade industrial. Trata-se, de acordo com Lefebvre, da negação da cidade entendida como domínio do valor de uso e de livre fruição, com sua transformação em mercadoria para o consumo, instrumento do valor de troca por excelência. A lógica da mercadoria que é a lógica da equivalência abstrata busca eliminar as diferenças, produzindo um achatamento da diversidade, da simultaneidade e das contradições presentes no espaço urbano (2000 [1974], pp. 62 e 333).

Para Berman, a vigorosa mistura de pessoas e tráfego, negócios e residências, ricos e pobres, ainda presente na cidade oitocentista, foi eliminada, cedendo lugar a “um mundo espacialmente e socialmente segmentado – pessoas aqui, tráfego ali; trabalho aqui, moradias acolá; ricos aqui, pobres lá adiante; no meio, barreiras de grama e concreto (…)” (1988 [1982], p. 162).

Se a cidade século XIX pode ainda estabelecer um elo de continuidade com as lições do passado então disponíveis na forma da cidade tradicional, o século XX assume como tarefa a sua eliminação, como requisito fundamental da modernidade.

Terceira onda: da rodovia à nebulosa

Nas regiões intensamente urbanizadas, já não subsistem

 as tradicionais separações entre zona urbana, zona suburbana

 e zona rural (…). Há simultaneamente um processo de fusão,

 de integração entre as áreas urbanizadas dos municípios da região

 e um processo de dispersão, de esgarçamento do tecido urbano.

 Nestor Goulart Reis Filho

(2006, pp. 81 e 89)

Os impactos nas cidades produzidos pelo crescimento das forças produtivas decorrentes da industrialização são visionariamente descritos por Lefebvre como processo de “implosão-explosão” seguido da fragmentação, homogeneização e hierarquização do espaço (1972 [1970], pp. 20). A inédita concentração de capitais, pessoas e mercadorias iniciada no século XIX e levada ao paroxismo no século XX faz explodir os núcleos urbanos, estendendo-se por todas as partes do território.

A oposição campo-cidade dissolve-se, assumindo novas formas menos definidas. As aglomerações urbanas atingem dimensões inéditas, possibilitadas (e induzidas) pelo transporte motorizado, dando origem ao fenômeno contemporâneo das nebulosas urbanas ou urbanização dispersa.

Para Harouel, “a vulgarização do automóvel transforma o subúrbio num imenso espaço difuso, em perpétuo crescimento, devorando os campos mais distantes” (1990 [1985], p. 107). O autor percebeu no fenômeno da suburbanização, possibilitado a partir da utilização do transporte individual motorizado, uma antecipação das características que seriam assumidas em larga escala pela forma urbana das cidades contemporâneas algumas décadas depois.

Outro indício precoce da dispersão e fragmentação dos tecidos urbanos seria a experiência dos conjuntos habitacionais proletários modernistas, na medida em que passaram a ser implantados cada vez mais afastados das zonas centrais da cidade, como enclaves residenciais isolados e apartados do tecido urbano para moradia das classes populares.

No Brasil, não por acaso, o início do fenômeno da urbanização dispersa coincide, na década de 70, com o processo de reconhecimento e criação das regiões metropolitanas. O poder de atração das principais capitais brasileiras, aliado à ausência de uma reforma agrária que assegurasse condições de condições de vida dignas no campo, produziu o inchaço populacional e o conseqüente transbordamento de parte desta população para áreas periféricas cada vez mais distantes. Através dos eixos rodoviários e ferroviários foram se estabelecendo processos de conurbação, bem como as redes de comunicação interligando o conjunto de municípios que cresciam sob o raio de influência política, econômica e cultural da metrópole.

Se a metropolização representa um passo para além dos processos de surbubanização que a antecederam, a urbanização dispersa opera, sobretudo a partir da primeira década do século XXI, uma descentralização ainda mais ampla, mais periférica, tentacular e policêntrica, tendendo em alguns casos à formação de grandes sistemas de áreas metropolitanas.

Trata-se, evidemente, de um quadro muito complexo, ao qual Reis (2006) dedica uma obra de fôlego, apresentando os resultados de pesquisas por ele conduzidas sobre a urbanização dispersa no estado de São Paulo. Fonte de referência sobre o assunto, o livro apresenta estudos detalhados sobre as mudanças nas formas dos tecidos urbanos, nos modos de vida da população, na organização do mercado imobiliário e na adoção de novas formas de gestão dos espaços urbanos, com novas formas condominiais diversificadas, como nos enclaves antiurbanos corporativos e residenciais.

Frente aos objetivos do presente artigo, interessa destacar a linha de continuidade com as transformações em curso nas cidades a partir do século XIX e o aprofundamento das lógicas de produção de um espaço cada vez mais abstrato e violento, desde então desencadeadas.

O ponto de inflexão entre a cidade moderna ou industrial e a cidade contemporânea (também chamada de cidade pós-moderna ou pós-industrial) foi a globalização financeira do capitalismo, a partir da década de 70, quando a expansão das redes de comunicação possibilitou a intensificação do fluxo de pessoas e de valores financeiros e simbólicos, a formação de megacorporações transnacionais, o crescimento de fluxos migratórios, a segregação socioespacial, a especulação imobiliária e financeira e a concentração de recursos de ordem local, nacional e global em grandes metrópoles.

O fosso econômico e social, estabelecido entre as classes dominantes e dominadas, se expressa na forma da nova cidade com a produção de guetos e barricadas. Os shopping centers e os condomínios fechados, construídos como espaços isolados, segregados, voltados para dentro de si mesmos e ostensivamente defendidos das “ameaças externas”, tornam-se, então, os elementos icônicos da paisagem urbana contemporânea, multiplicando-se por todas as cidades do mundo (DUARTE, 2006, p. 132). Ao movimento centrífugo de evasão em direção a localidades cada vez mais afastadas, exercido pelos shoppings e condomínios horizontais, se associaram os loteamentos fechados e as favelas, incluindo os guetos de pobres no processo de dispersão urbana.

Motivada pela procura de terras baratas, expansão incessante dos tecidos urbanos promove no dizer de Lima: “um padrão de sociabilidade anti-urbano e segregador, e intensificando o consumo de recursos naturais num volume sem precedentes” (2005).

A especulação financeira e imobiliária atua de modo a impor novos padrões de urbanização e de privatização do espaço público, apresentando-se, como a única alternativa para se regular os complexos problemas urbanos das áreas metropolitanas contemporâneas. A escala impressionante dos megaempreendimentos (abarcando, por vezes, mais de um município), fortemente associada às estratégias de marketing empresarial que prometem a promoção do desenvolvimento urbano e a criação de empregos a “custo zero” para os cofres públicos, tem como resultados a flexibilização das normas urbanísticas e das exigências legais para a legalização dos projetos junto às administrações municipais.

Diante a inércia do Poder Público, o mercado passa a comandar as ações urbanizadoras sobre o território: “sob influência do modelo empresarial na gestão da cidade, os profissionais do projeto e do planejamento são, não raro, compelidos à conivência ou à desmobilização, quando não são totalmente excluídos de discussões e decisões” (LIMA, 2005).

Como características gerais das novas paisagens contemporâneas, constituídas pela dispersão urbana, podemos assinalar a expansão, em escala metropolitana, de um tecido urbano descontínuo e fragmentado, marcado por densidades de ocupação relativamente baixas (exceto no caso das favelas), com núcleos ou pólos que visam a criação de novas centralidades (mais ou menos subalternas), como um arquipélago de ilhas, entremeadas de vazios (ou glebas remanescente do mundo rural, conectados por um sistema de vias expressas, mas funcionando como bairros isolados e segregados, completamente interiorizados, muitas vezes sob rígidos esquemas de vigilância.

Mais uma vez, caso a hipótese aqui apresentada esteja correta, estaríamos diante de uma etapa do processo histórico, iniciado com a cidade industrial, de negação da cidade como lugar do encontro entre os diferentes, e de desestabilização das práticas socioespaciais cotidianas de convivência e sociabilidade, cada vez mais pressionadas pela radicalização das formas de privatização e controle do espaço público.

Reflexões para o debate

 Nem retorno (para a cidade tradicional),

 nem fuga para a frente, para aglomeração urbana

 colossal e informe – esta é a prescrição.

Henri Lefebvre

(1991 [1968], p. 20)

Recapitulando: se, na primeira onda que se abateu sobre a cidade, as malhas urbanas se agigantam sem, contudo, romper a continuidade espacial dos tecidos urbanos; se na segunda, a violência com que se implanta o ideário modernista torna irreconhecíveis as articulações tradicionalmente estabelecidas entre o lote, a rua e a quadra; na terceira, assistimos a um radical aprofundamento dos efeitos da dissolução das partes no todo, com o esgarçamento do tecido urbano que passa a se expandir de forma descontínua e fragmentária por todo o território circundante.

Cada etapa prepara e anuncia o caminho a ser trilhado pela seguinte. Assim, o bulevar que surgiu como forma de acolher em suas amplas e arborizadas calçadas o fenômeno moderno das multidões, representou também um coerente e estratégico alargamento das malhas urbanas por onde escoaria, no século seguinte, o tráfego motorizado.

O século XX, transformando os espaços de convivência em espaços de trânsito, produziu a tecnificação do meio urbano, expulsando das ruas seus antigos donos, desde então denominados de pedestres. As lógicas estruturantes dos tecidos urbanos preexistentes, encarregadas de promover a articulação entre o lote, a rua e a quadra foram sendo, a cada nova intervenção sobre as malhas urbanas, suprimidas. O espaço tornou-se abstrato, incompreensível e ameaçador. As cidades deixaram de fazer sentido para seus  habitantes de carne e osso e passaram a ser concebidas, planejadas e construídas para atender as demandas do tráfego motorizado. A paisagem transformada, agora era compostas de vias-expressas, viadutos, túneis e rodovias. Os congestionamentos e os acidentes de trânsito se incorporaram-se irreversivelmente ao cotidiano vivido pelas populações na cidade do automóvel.

Na contemporaneidade, a concentração de capitais, pessoas e mercadorias, cria nas cidades uma força irresistível de compressão sobre o tecido urbano. O resultado pode ser aproximado, metaforicamente (como sugere Lefebvre), a uma implosão seguida de explosão. Com a descompressão, o núcleo urbano estala, estendendo-se por extensões cada vez maiores do território circundante. As rodovias se espicham indefinidamente e se interconectam, criando eixos de circulação através dos quais o novo território, fragmentado e descontinuo, pode se interligar num sistema de áreas metropolitanas, dando origem ao fenômeno contemporâneo dispersão urbana.

Como se pode perceber, o esforço empreendido no presente artigo, não consiste na apresentação de fatos novos surpreendentes ou desconhecidos pelos especialistas da área. A proposta seria, tão somente, apresentar o encadeamento dos mesmos fatos já sabidos, tentando identificar uma possível linha de continuidade entre eles, enfatizando a dialética estabelecida entre ruptura e continuidade no processo histórico que vai da cidade do século XIX, passa pela cidade do automóvel, chegando ate às nebulosas urbanas contemporâneas.

O encadeamento dos fatos aqui apresentados não resolve, por si só, os dilemas colocados para as cidades do século XXI. Nossa aposta, no entanto, é que ao aceitar como plausíveis os argumentos aqui desenvolvidos, possamos questionar o suposto ineditismo da natureza dos processos em curso na cidade contemporânea, evitando, assim, naturalizá-los como inerentes ao “espírito do nosso tempo” (uma expressão, aliás, muito apreciadas pelos modernistas). Paralelamente, ao buscar o fio condutor que ligaria tais processos a etapas antecedentes, poderíamos compreender tais etapas  como partes de um único e mesmo processo.  Comandado de forma hegemônica pelo poder econômico, tal processo  visaria a privatização dos espaço urbanos e sua transformação em mercadoria para compra e venda,  como forma de ampliar os mecanismos de concentração da riqueza socialmente produzida, às custas da exclusão de extratos cada vez maiores da população.

Aprendemos, ao longo do século passado, a acreditar nas promessas progressistas do desenvolvimento científico e tecnológico, ao mesmo tempo em que fomos incentivados a aceitar a morte da cidade tradicional como condição necessária para a plena realização daquelas promessas utópicas. O futuro, no entanto, deixou de ser uma promessa para se tornar uma ameaça. Nossas cidades, espacialmente  repartidas e socialmente segregadas, não conseguem assegurar condições dignas de vida para suas populações. Contudo, ao tentar evitar defender nostalgicamente a volta aos padrões do passado, acabamos caindo na armadilha de fazer a defesa ideológica das mudanças preconizadas pela lógica do capital.

Não se trata de desconhecer as transformações por que passou a sociedade humana nos últimos duzentos anos. As transformações nos modos de vida (que não foram poucas), produziram muitas novas demandas sobre o meio urbano.  Mas a recíproca também é verdadeira: modificações na configuração espacial das cidade, em grande parte impostas pelos interesses econômicos das classes dominantes, implicaram em formas de controle e privatização do espaço público,  com a eliminação de um tipo de sociabilidade eminentemente urbana, baseado no encontro e na troca entre os diferentes.

Tais são as questões propostas ao debate neste artigo, que concluímos invocando uma reflexão de Bernardo Secchi: “talvez devêssemos nos habituar a considerar as características da cidade contemporânea não como a representação de um futuro desejável, mas como uma ocasião para construí-lo através de continuas explorações projetuais” (2015 [2000], p. 184).

Referências bibliográficas:

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SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Cia das Letras, 1988 [1976].

NOTA: artigo originalmente publicado conforme referência a seguir:

DUARTE, C. F. . O movimento das cidades no tempo: o bulevar, a rodovia e a nebulosa. Geograficidade, v. 9, p. 65-75, 2019.

CARTOGRAFIA URBANA: INFORMAÇÃO CONDENSADA SOBRE O TERRITÓRIO

novembro 5, 2019
Paul Klee

Para o estudo da história da forma urbana, a análise cartográfica constitui um recurso metodológico imprescindível. Como documentos de época (fontes primárias de pesquisa) que são, os mapas urbanos registram a configuração assumida pelas ruas, quadras e edificações de uma mesma cidade em determinados momentos de sua história. Permitem, portanto, procedimentos analíticos de grande valia e de caráter exclusivo, já que não seria possível empreendê-los a partir da pesquisa historiográfica tradicional baseada em documentos escritos. Entre esses procedimentos destacam-se, principalmente: análises comparativas entre diferentes períodos históricos, superposição de traçados, estudos da toponímia dos logradouros ao longo da história, recuperação de informações sobre elementos urbanos já desaparecidos, reconstituição dos processos de transformação urbanística, permitindo, em muitos casos, acrescentar informações inéditas à historiografia. Não obstante a validade dos procedimentos analíticos anteriormente mencionados, vale lembrar que a análise cartográfica não pode prescindir dos aportes fornecidos pela pesquisa histórica tradicional.

Para a pesquisa cartográfica é de fundamental importância o fenômeno da permanência histórica apresentado pelas vias e pelo plano de uma cidade. A velocidade e a intensidade das transformações verificadas nas formas arquitetônicas é, em muito, superior àquelas verificadas no desenho das vias e da inscrição bidimensional da forma dos prédios contidos no plano cadastral urbano. Os tempos longos de maturação do desenho das vias de uma cidade não são reportáveis às transformações volumétricas da massa edificada. Tratam-se de escalas temporais distintas. Ressalvadas as exceções representadas por intervenções de grande magnitude, patrocinadas por um poder fortemente centralizado, as transformações verificadas na malha viária ocorrem em períodos históricos de longa duração, abarcando o horizonte temporal de muitas gerações de construtores e usuários, bem como a vida útil das várias gerações de edifícios por eles construídos e habitados.

Mesmo os cataclismos naturais ou as guerras não têm sido, por si só, capazes de apagar completamente os vestígios da forma urbana contidos no plano da cidade. Inscritos no solo através, principalmente, dos calçamentos e pavimentações das vias e dos alicerces ou das fundações dos prédios, os vestígios do traçado viário sobrevivem, via de regra, ao desaparecimento da massa edificada, fornecendo, através da sua permanência, as coordenadas para a reconstrução dos edifícios. Os exemplos de Lisboa, parcialmente destruída pelo terremoto de 1755, e da reconstrução de grandes áreas de Berlim destruídas por bombardeios durante a Segunda Grande Guerra, para ficar apenas com dois exemplos (não obstante tratar-se um da cidade tradicional e outro da cidade moderna), ajudam a compreender a afirmação acima. A reconstrução de Lisboa, implementada pelo iluminismo pombalino, tratou de afirmar, através da “evolução do barroco em neoclássico” (FRANÇA, 1981, p. 65), o “estilo da Reconstrução”, associado ao discurso estético oficial do regime. No caso de Berlim, a reconstrução da cidade ensejou uma aposta na transformação das estruturas urbanas segundo o ideário do urbanismo modernista em voga na época. Em ambos os casos, a renovação do desenho das vias decorreu mais da imposição de novos modelos patrocinados por uma vontade política (de um poder centralizado) que dos efeitos da destruição propriamente dita.

Figura 01: Plano para a reconstrução de Lisboa de autoria dos arquitectos Eugénio dos Santos Carvalho e Carlos Mardel, 1758. 

Fonte: http://www.museudacidade.pt/Coleccoes/Cartografia/paginas/Planta-topografica-Lisboa-Eugenio-dos-Santos-Carvalho-Carlos-Mardel.aspx 

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Figura 02: Plano para a Reconstrução do Hansaviertel em Berlim, segundo o ideário do urbanismo modernista. Interbau (Internationale Bauausstellung), 1957.

Fonte: http://www.interbau57-07.de/InterbauKarte.html

A técnica de comparação dos vários planos de uma cidade, ou mesmo de cidades diferentes aproxima-se, nesse sentido, da pesquisa arqueológica. Cada mapa antigo de uma cidade representa para o pesquisador uma trincheira arqueológica “escavada” no tempo histórico. Permitindo a identificação e análise dos vestígios remanescentes do passado, incorporados às transformações verificadas num determinado período, os mapas constituem, eles próprios, as “camadas estratigráficas” dos diversos tempos presentes no processo de maturação/consolidação do tecido urbano.

Os documentos produzidos pela cartografia urbana consistem na representação gráfica dos elementos materiais constitutivos do território urbano sobre um plano, por meio da escolha de um sistema de projeção e reduzidos a uma escala dada. A redução escalar do objeto a ser representado implica necessariamente na supressão, em maior ou menor número, dos detalhes percebidos, bem como na esquematização das suas formas, sem prejuízo da exatidão geral do documento. Trata-se de uma questão essencial para a cartografia. Vejamos, sobre a questão das escalas na cartografia, a sugestiva imagem criada por Jorge Luís Borges, na passagem do conto “Do rigor na ciência”, transcrita abaixo:

“…Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu uma tal Perfeição que o Mapa duma só Província ocupava toda uma Cidade, e o Mapa do Império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e coincidia ponto por ponto com ele (…)” (1998, p. 95).

Cada escala comporta uma determinada capacidade comunicativa. Variando-se as escalas do documento, variam também os níveis de informação passíveis de registro em planta sobre o território. Para tanto, foram desenvolvidos sistemas de convenções gráficas visando permitir o entendimento correto do que se pretendia ressaltar, de acordo com cada escala utilizada. Do conhecimento destes procedimentos dependem, em última análise, a legibilidade e o grau de confiabilidade das informações contidas na planta a ser produzida.

A utilização de um sistema de projeção revela outro grau de abstração, intrínseco às técnicas de representação geométrica do território. Nas plantas cadastrais urbanas, por compreenderem superfícies territoriais relativamente pequenas, nas quais as deformações das coordenadas esféricas do globo são consideradas desprezíveis, utiliza-se mais freqüentemente a projeção ortogonal ou ortográfica. Neste tipo de projeção, o ponto de visada está situado no infinito e os raios projetantes são paralelos entre si e ortogonais ao plano de projeção. Significa dizer que o ponto de visada sobre a cidade a ser representada simplesmente não existe como possibilidade prático-concreta para um observador “de carne e osso”. Assim, em pleno Renascimento (séc. XV-XVI) e em sintonia com os avanços da ciência verificados na mesma época em outros campos do conhecimento, a cartografia antecipava um olhar à distância sobre a vida, descolado da superfície terrestre.

O desenvolvimento e o aperfeiçoamento das técnicas de cartografia urbana deveu-se, sobretudo, à sua utilização como instrumentos de poder durante o período dos grandes descobrimentos marítimos, a partir do século XV, e a subseqüente consolidação dos impérios coloniais ultramarinos. A associação do desenho e da matemática produziu uma notável especialização das técnicas de representação cartográfica que, a partir de então, tornar-se-ia indispensável para os objetivos de disputa e conquista do novo mundo. O planisfério, permitindo pela primeira vez uma visada sobre a totalidade da superfície terrestre, inaugura então uma nova concepção do espaço. A cartografia se encarrega de fazer o mundo caber nos mapas; o longe é trazido para perto. As decisões tomadas à distância tornam-se mais eficazes do que nunca. Assim, debruçado sobre os mapas, o poder se fazia, a partir de então, mundialmente presente.

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Figura 03: MAPAMUNDI UNIVERSALIS COSMOGRAPHIA SECUNDUM PTOLOMAEI TRADITIONEM ET AMERCI VESPUCCI ALIORNUNQUE ILUSTRATIONES 1507

Fonte: Waldburg, Wolfegg (Apud. Secretaria Municipal de Urbanismo, 2000).

A elaboração dos mapas, veículos de informação condensada sobre o território, foi confiada aos cosmógrafos (Bueno, 1998, p. 94) e engenheiros militares. A estes últimos coube, sobretudo, a tarefa de planejar e conduzir a construção de cidades e fortalezas durante o processo de ocupação dos territórios coloniais. As peças gráficas produzidas por esse quadro de profissionais tecnicamente habilitados continham, portanto, informações estratégicas e, como tais, eram consideradas sigilosas. Essa característica conferia a esses documentos um elevado grau de confiabilidade com relação à representação dos territórios cartografados. Dessa precisão ainda se vale hoje, evidentemente com outros objetivos, a pesquisa histórica desenvolvida a partir dos documentos cartográficos.

Destacamos, a título de exemplo, o caso da cartografia histórica da cidade de Belém (PA), cuja confiabilidade vem permitindo grandes avanços na produção da historiografia urbana da cidade (DUARTE, 2000). Vemos na figura 04, um trecho da “Planta da Cidade do Gram Para”, levantada pelo engenheiro alemão Andre Schwebel, em 1753, sobreposto à planta cadastral atual de Belém, restituída a partir da técnica de aerofotogrametria. A coincidência dos registros cartográficos sobrepostos atesta a precisão técnica da planta elaborada no século XVIII.  Por conseguinte, pode-se atribuir rigor científico às análises e conclusões decorrentes da pesquisa histórica baseada em tais documentos de época.

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Figura 04: Sobreposição do traçado da “Planta da Cidade de Belem do Gram Para”, de 1753 (Fundação Biblioteca Nacional), sobre planta cadastral atual de Belém.

Fonte: arquivo do autor (desenho de Fernando Marques)

Tão abstratos quanto a própria paisagem que representam, os mapas configuram, eles próprios, um certo conhecimento produzido sobre a realidade. Não seria a análise, ela mesma, uma forma de mapear a realidade? Assim, também os mapas sintetizam um momento determinado do processo de análise empreendido pelo pensamento. Sendo os mapas, no momento de sua elaboração, o ponto de chegada de um processo de acurada análise e observação do território, tornam-se, a partir de então, ponto de partida para novas incursões do pensamento, permitindo avançar o conhecimento produzido. No entanto, a relação entre representação e coisa representada não se apresenta de forma transparente, residindo aí, certamente, o maior desafio a ser enfrentado pela pesquisa. Não existem fórmulas. Cada mapa encerra, por assim dizer, um enigma próprio, cabendo à pesquisa histórica recorrer a outras fontes disponíveis para esclarecer e contextualizar o período em estudo, complementando assim os dados necessários para a análise. Dessa forma, num determinado momento da análise, cada mapa deverá ser tratado como um caso particular.

Os mapas registram, simultaneamente, mais e menos do que um observador pode perceber andando pelas ruas de uma cidade. A representação bidimensional suprime a volumetria das edificações; os edifícios são transformados em polígonos geometricamente convencionados, representando a projeção de sua área construída sobre o plano horizontal. Não se pode através de um mapa pretender conhecer a fachada de um determinado prédio. Mesmo os referenciais urbanos e paisagísticos, que nos facultam a orientação necessária aos nossos deslocamentos diários na cidade, podem não estar ali representados. Ou, caso estejam, podem não ser imediatamente reconhecíveis. Em geral, ao ser confrontado com o mapa de sua própria cidade, o morador não a reconhece de imediato.

As limitações inerentes à técnica de representação cartográfica suprimem dos mapas também as pessoas e o movimento; os mapas não registram os fluxos, mas sim os fixos, representados pelos objetos imóveis que compõem a paisagem construída. Os fixos, considerados em si mesmos, são apenas formas vazias, cabendo ao pesquisador a tarefa de restituir, através da análise dos fluxos, os seus conteúdos concretos. Sem os fluxos, não se pode pretender compreender corretamente os fixos.

Por outro lado, a visada permitida pela observação de um mapa urbano permite abarcar de uma só vez toda a cidade. Surge assim, diante do observador, um desenho de conjunto só acessível de um ponto de vista situado fora da cidade. Deste modo, a cartografia exerce um olhar ubíquo sobre a forma da cidade. Trata-se, no entanto, de um olhar congelado no tempo, em razão da data do registro. Todo levantamento cartográfico é o registro de um tempo da forma da cidade. No exato instante em que são concluídos, os mapas já começam a ficar desatualizados. Não obstante esse fato (de serem datados), de resto compartilhado por todo e qualquer produto do fazer humano, os mapas antigos nos permitem vivenciar a sensação de voltar no tempo e surpreender, com os olhos de hoje, aquelas cidades no momento em que foram registradas. E também, como não raro acontece, estabelecer elos de ligação entre o passado e o futuro, tendo o presente como o suporte e o veículo daquela transição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AYMONINO, Carlo. O significado das cidades. Lisboa: Editorial Presença, 1984.

BORGES, Jorge Luís. “Do rigor na ciência”, in: História universal da infâmia. São Paulo: Globo, 1998.

BUENO, Beatriz P. Siqueira. A iconografia dos engenheiros militares no século XVIII in: Coletânea de Estudos Universo Urbanístico Português 1415-1822. Lisboa: CNCDP, 1998.

CHIAVARI, Maria Pace. As transformações urbanas do século XIX in: O Rio de Janeiro de Pereira Passos: uma cidade em questão II / Giovanna Rosso Del Brenna, org., Rio de Janeiro: Index, 1985.

DUARTE, Cristovão Fernandes. “São Luís e Belém: marcos inaugurais da conquista da Amazônia no período filipino”. Revista Oceanos, n. 41, Lisboa, jan/mar 2000.

FRANÇA, José-Augusto. A reconstrução de Lisboa e a arquitectura pombalina. Biblioteca Breve, vol. 12. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1981.

GASPAR, Jorge. A morfologia urbana de padrão geométrico na Idade Média, in: Revista Portuguesa de Geografia, Centro de Estudos Geográficos de Lisboa, Separata de Finisterra, vol. IV-8, 1969.

HAROUEL, Jean-Louis. História do Urbanismo. Campinas, SP: Papirus, 1990.

MORRIS, History of urban form, 3a. ed., Hong Kong: British Library Cataloging in Publication Data, 1994.

ROSSA, Walter. A urbe e o traço: uma década de estudos sobre o urbanismo português. Coimbra: Livraria Almedina, 2002.

ROSSI, Aldo, A arquitectura da cidade. Lisboa: Edições Cosmos, 1977.

Secretaria Municial de Urbanismo. Centro de Arquitetura e Urbanismo. Do cosmógrafo ao satélite: mapas do Rio de Janeiro. Jorge Czajkowski (org.). Rio de Janeiro: SEURB/CAU, 2000.

Reinvenção da cidade

maio 28, 2015

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No Rio de Janeiro as favelas acumulam mais de um século de existência. Expostas a intempéries, sobrevivendo a desmoronamentos, incêndios, ‘balas perdidas’, ao preconceito, à segregação socioespacial, resistiram ainda a inúmeras tentativas de remoção pela força dos tratores e dos cassetetes. Não obstante tantas ameaças, as favelas cresceram e se fortaleceram, incorporando-se de modo irreversível à paisagem cultural carioca.

Como puderam, diante de tantas adversidades, perdurar por tanto tempo, multiplicando-se pelo território, com tanta vitalidade?

Mesmo sem a pretensão de elucidar tal enigma, acredito que o processo de produção das favelas, patrocinado pelos excluídos sob a forma de espaços intersticiais de resistência e sobrevivência, ensejou a criação de uma estratégia defensiva frente à modernização e tecnicização do ambiente urbano.

As frequentes comparações entre as malhas viárias da cidade e da favela costumam acentuar a baixa acessibilidade da última, sobretudo em áreas de topografia acidentada. É certo que a precariedade da pavimentação, assim como a improvisação na solução dos acessos mais íngremes, contribuem para reduzir a sua eficiência. Contudo, se tivermos em conta o corpo humano como instrumento de mediação dos espaços, a acessibilidade intrínseca do traçado urbano da favela pode revelar-se bastante satisfatória, com espaços públicos construídos para as pessoas e não para carros. Tal distinção aparece tacitamente na conhecida oposição entre ‘favela’ e ‘asfalto’. Ao identificar a cidade com o asfalto, admitimos que suas ruas largas e bem pavimentadas destinam-se preponderantemente aos automóveis. Congestionamentos, poluição ambiental, atropelamentos e colisões tornaram-se fatos corriqueiros, incorporados ao cenário ‘progressista’ da cidade do asfalto.

A acessibilidade das favelas deve, portanto, ser analisada frente à generosa oferta de espaços adequados e seguros para as práticas socioespaciais cotidianas. Uma espécie de ‘inteligência corporal coletiva’, que se traduz em competência urbanística pela racionalização dos recursos disponíveis, preside a interligação das vias na favela. As articulações entre ruas, moradias e quadras criam uma ‘sintaxe espacial’ perfeitamente legível, responsável pela estruturação do seu tecido urbano.

A solução para as favelas não está fora delas, mas no reconhecimento de que representam a ‘reinvenção’ da própria cidade, entendida como o lugar do encontro e da troca entre os diferentes. Uma cidade renascente, rejuvenescida e, incontestavelmente, alegre. Construída como resposta aos processos de exclusão social e segregação espacial, mas também como uma forma alternativa e clarividente de autoproteção com relação aos rumos da grande cidade à sua volta. Reflexo de uma sociedade desigual, a sociodiversidade presente nas favelas figura hoje como parte fundamental da solução para os problemas enfrentados pela cidade como um todo.

COMO FAZER AS PIORES OLIMPÍADAS DA HISTÓRIA?

maio 11, 2014

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O australiano John Coates, vice-presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), acumulando 40 anos de experiência em Jogos Olímpicos e tendo sido chefe do comitê organizador local da Olimpíada de Sydney em 2000, depois de seis viagens ao Rio como parte da comissão responsável pela supervisão dos Jogos, declarou publicamente que “os preparativos para a Olimpíada de 2016 são os piores que ele já viu na história recente dos jogos” (O Globo, 30/04/14). Duas semanas antes, o presidente da entidade, Thomas Bach, pressionado pelas federações esportivas, anunciara que o COI decidiu tomar as rédeas da organização dos Jogos e recrutar no Rio um administrador de projetos “com experiência em construções para monitorar, no dia a dia, os progressos das obras de infraestrutura”.

Antes de tentar explicar as razões de tamanha incompetência por parte da administração municipal da Cidade do Rio de Janeiro (responsável, em ultima análise, pela realização do evento), seria oportuno especular sobre os reais motivos que levaram à escolha do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos, anunciada pelo COI em outubro de 2009, em Copenhague.

O sucesso da “nossa” candidatura, desbancando fortes e ricas concorrentes como Madri, Chicago e Tóquio, foi celebrado pela mídia nacional como uma vitória da cidade e do país. A estabilização da economia brasileira e a retomada do crescimento ao longo da última década, por um lado, e os encantos da Cidade Maravilhosa, bem como a alegria e a hospitalidade do povo carioca, por outro, seriam, segundo o discurso oficial, as razões principais para o resultado daquela disputa.

Pairava no ar, contudo, a memória recente da experiência com a realização dos Jogos Panamericanos de 2007. Em que pese a insistência da mídia oficial em afirmar que, do ponto de vista da organização das competições esportivas e do rendimento alcançado pelos atletas brasileiros, o PAN 2007 foi considerado um evento exitoso, o que se assistiu com relação ao planejamento e à gestão dos recursos públicos investidos foi algo próximo a um desastre. Em pouco tempo o tão propalado legado social e urbanístico se viu reduzido a algumas poucas arenas esportivas caras, mal equipadas ou necessitando de reformas estruturais como o Estádio Olímpico João Havelange (Engenhão).

Como se depreende das informações contidas no Plano de Trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, instituída para investigar supostas irregularidades no PAN 2007[1], o modelo de gestão adotado na condução dos trabalhos, seja por parte do Comitê Organizador, do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) ou da Administração Pública Local, se caracterizou por um planejamento ineficiente das ações, pelo autoritarismo na tomada de decisões, pela falta de transparência e pela desorganização administrativa na gestão dos recursos e no gerenciamento das obras contratadas. Dessa forma, a escolha da cidade que há apenas dois anos realizara em condições tão controversas os Jogos Panamericanos representava, para dizer o mínimo, um risco para o sucesso dos Jogos Olímpicos. Ou seja, o fiasco ora constatado pelo COI estava virtualmente anunciado desde o primeiro momento.

De lá pra cá o que se assistiu, como era esperado, foi a reedição aprimorada e sofisticada dos mesmos erros. A diferença está no montante dos recursos públicos agora envolvidos que representam (segundo estimativas até agora divulgadas) cerca de dez vezes o que foi gasto no PAN 2007, ou seja, algo em torno de R$ 37 bilhões de reais[2]. Ao tomar os Jogos Panamericanos mais uma vez como exemplo e considerando a forma como os cronogramas de obra são sistemática e propositalmente descumpridos pelas empreiteiras (visando à obtenção de aditivos e outras vantagens), é admissível supor que esse orçamento seja ainda em muito ultrapassado.

Exclusivamente sob a ótica capitalista, num mundo em que, aparentemente, o neoliberalismo reina absoluto, a decisão do COI pode ter sido até a mais acertada. Dentre as opções de cidades-sede para os Jogos de 2016 certamente o Rio de Janeiro configurava um paraíso político, fiscal e jurídico para que as grandes negociatas comumente associadas aos megaeventos esportivos transcorressem sem maiores objeções ou empecilhos burocráticos desnecessários.

Talvez o grande pecado do COI tenha sido subestimar no caso brasileiro a promiscuidade escandalosa que caracteriza as relações entre o Público e o Privado (as vezes não é fácil explicar o Brasil nem para nós mesmos). Assim, diante da perspectiva de abocanhar tão volumosos recursos em tão curto espaço de tempo, um reduzidíssimo grupo formado pelas maiores empreiteiras do país passou a disputá-los com furiosa avidez. Organizadas em consórcios privados, as grandes empreiteiras se apressaram na partilha dos recursos previstos e na imposição à administração pública de um bilionário elenco de obras a serem implementadas. Tais obras (ou seria melhor dizer, mega-empreendimentos) possuíam, como era de se esperar, um caráter eminentemente arbitrário, atendendo, sobretudo, aos interesses da especulação imobiliária e financeira (que desde há muito andam juntas e irmanadas) e apresentavam-se, do ponto de vista urbanístico, completamente desarticuladas entre si. Além da construção de instalações esportivas para os jogos, o elenco de obras proposto compreendia: a Operação Urbana Consorciado do Porto do Rio, a construção, implantação e operação de três linhas de BRT – Transoeste, Transcarioca e Transbrasil, duplicação do Elevado do Joá, Parque Urbano da Avenida Rio Branco, Porto Olímpico, Parque Olímpico, a construção do Museu do Amanhã e Museu de Arte do Rio (MAR), entre outras.

A eficácia das estratégias empreendidas pelo poder econômico foi em larga medida facilitada pelo processo de esvaziamento da representação político-partidária em função, sobretudo, do financiamento privado das campanhas eleitorais. Nesse sentido, a eleição e a reeleição do atual Prefeito da cidade cumpriram a função inequívoca de assegurar o êxito daquelas estratégias.

Diante da “farra do boi” preconizada pelo poder econômico, caberia certamente à Prefeitura definir, através dos canais de participação democrática da sociedade, as reais prioridades para os investimentos, exercendo o seu papel de mediação entre os vários interesses em jogo.  Seria esta uma oportunidade excepcionalmente favorável para que, à luz das diretrizes de planejamento urbano apontadas pelo Plano Diretor, a cidade do Rio de Janeiro pudesse enfrentar os problemas historicamente acumulados e promover o desenvolvimento urbano, com vista à construção de uma cidade socialmente mais justa e ambientalmente mais responsável.

Refém, contudo, dos compromissos econômicos assumidos com seus patrocinadores de campanha, o prefeito da cidade viu-se rebaixado à condição de gerente dos negócios das grandes empreiteiras, papel, aliás, que vem exercendo com extraordinária competência e dedicação. Nesta linha de raciocínio, cumpriria especular até que ponto o estilo pessoal arrogante e autoritário que tem caracterizado a atuação do prefeito, não seria apenas um “efeito compensatório” para encobrir a subserviência aos interesses privados e privatizantes que comandam, na verdade, as decisões do Executivo Municipal.

De fato, entre as principais marcas de seu governo destacam-se o alijamento do corpo técnico de carreira da Prefeitura das decisões sobre as intervenções urbanas e o amordaçamento dos órgãos de planejamento, controle e fiscalização das obras contratadas na esfera municipal. De resto, foram aprofundados e consolidados procedimentos que já vinham das administrações anteriores como o desprezo pelo Planejamento Urbano e o desrespeito às diretrizes contidas no Plano Diretor da cidade, somados à falta de transparência com relação às decisões acerca das prioridades de investimentos e a ausência de participação das comunidades diretamente envolvidas e/ou impactadas pelas intervenções urbanas propostas.

Cabe ressaltar ainda a recorrente quebra dos compromissos públicos assumidos pelo prefeito com a sociedade carioca. Entre outras promessas desfeitas ou parcialmente cumpridas, destacam-se a retirada da Vila de Árbitros e Mídia da área portuária, onde estava prevista, para Curicica na zona oeste e, ainda, a fraude representada pelo Concurso Morar Carioca, organizado pelo Instituto de Arquitetos Brasileiros (IAB-RJ) em 2010. O concurso selecionou 40 equipes multidisciplinares, coordenadas por arquitetos, para elaborar projetos de urbanização em 253 favelas da cidade, com investimentos estimados em oito bilhões de reais. Depois de quase quatro anos de espera, praticamente nada foi feito. No lugar das ações previstas de urbanização, regularização fundiária e melhoria da qualidade de vida das comunidades faveladas, o que se assiste é a reedição da equivocada prática das remoções que pareciam estar, até pouco tempo atrás, descartadas ou reservadas para os casos de moradias comprovadamente construídas em áreas de risco.

Com relação aos equipamentos para as competições esportivas e as habitações para alojamento dos atletas, pesa decisivamente contra o sucesso das Olimpíadas a prática generalizada de contratação de obras sem a elaboração prévia dos projetos executivos. Tais projetos deveriam, por princípio, conter todas as especificações técnicas necessárias ao seu funcionamento e à sua correta orçamentação. Deixados a cargo das empresas contratadas, os projetos executivos são elaborados, de forma atabalhoada, durante o andamento das obras, não apenas obstruindo a possibilidade de uma fiscalização técnica competente com relação à execução das obras, como também impondo a necessidade de sucessivas alterações aos projetos elaborados. Resultando de tomadas de decisão no próprio canteiro de obras, essas modificações acarretam soluções improvisadas e custos adicionais não previstos nos contratos originais. Dos temerários procedimentos técnicos acima resumidos o que se pode esperar, salvo um ou outro acaso milagroso, são obras superfaturadas e inacabadas, sem acessibilidade satisfatória e sem tratamento paisagístico e de desenho urbano dos espaços públicos localizados em seu entorno, com instalações técnicas precárias, mal equipadas ou sem as condições mínimas necessárias ao seu adequado desempenho.

Acrescente-se ainda que os Jogos Olímpicos de 2016 transcorrerão numa cidade combalida, segregada e violenta, com um trânsito caótico e transportes públicos ineficientes, com oferta precária de serviços urbanos, insuficiência das redes de telecomunicações e onde os níveis de poluição da Baía de Guanabara, das lagoas, rios e praias estão acima dos limites aceitáveis. Como se não bastasse tantas mazelas, acumuladas por décadas de omissão e falta de investimentos responsáveis, a Cidade Maravilhosa encontra-se envolta hoje numa espantosa bolha inflacionária que a coloca entre as cidades mais caras do mundo.

Nem mesmo a tão propalada hospitalidade do povo carioca parece estar completamente assegurada. Disso, as manifestações populares iniciadas em junho de 2013 e que tomaram as ruas do país, são indícios inelutáveis. Só na cidade do Rio de Janeiro, tivemos mais de um milhão de pessoas protestando contra os investimentos públicos canalizados para a realização dos megaeventos esportivos. Nem os mais otimistas prognósticos são capazes de assegurar que a Copa do Mundo da FIFA 2014, com início programado para junho próximo, transcorrerá em clima pacífico. A única dúvida que sombriamente ainda persiste diz respeito ao grau de repressão a ser utilizado pelo Poder Público. De qualquer forma, o que assistiremos durante a Copa do Mundo será tão somente uma pequena demonstração do que está por vir com a realização das Olimpíadas.

Como se vê, a dura e realista constatação do vice-presidente do COI não apenas acabará por ser confirmada, como entrará para os anais dos megaeventos esportivos. Faltando pouco mais de dois anos para a abertura dos Jogos, nenhum esforço, por mais hercúleo que seja, será capaz de reverter ou corrigir a tempo os erros cometidos pela desgovernada máquina de rapinagem do dinheiro público montada pelo poder econômico na cidade do Rio de Janeiro.

Contudo, o que se afigura como mais preocupante não se refere ao sucesso ou ao fracasso dos Jogos Olímpicos de 2016, mas à cidade que a eles sobreviverá. É claro que se lamenta o desconforto e os incômodos a que serão submetidos os nossos hóspedes inocentes, atletas e visitantes do mundo inteiro. É claro que se lamenta a vexaminosa superexposição de uma cidade sem lei, impiedosamente documentada pelos holofotes da mídia internacional. Mas há que se pensar necessariamente no “day after” e em como esta cidade poderá resistir e se recuperar do colapso olímpico que se anuncia.

Sairemos dessas Olimpíadas certamente pior do que entramos. Seremos uma cidade mais dividida, mais endividada e mais conturbada. Passados os megaeventos seremos obrigados a enfrentar o elevado custo urbanístico e social dos mega-empreendimentos e o desastre do legado olímpico. Haveremos de constatar, tal como nos alertaram insistentemente os especialistas em transportes, a ineficiência das superlotadas linhas de BRT como alternativa de mobilidade da cidade. Haveremos de buscar soluções para mitigar os danos causados pelo crime urbanístico e ambiental representado pela Operação Urbana Consorciada do Porto do Rio, com a construção de enclaves corporativos em torres de 30, 40 e 50 andares, além da demolição do Elevado Perimetral com a injustificável implantação de uma via expressa em seu lugar. Haveremos ainda que confrontar o equívoco das remoções injustificadas, sanar os seus danos sociais e prosseguir com os programas de urbanização das favelas. E isso para ficar apenas com os casos mais conhecidos.

Haverá, sem sombra de dúvida, muito trabalho a fazer. Teremos, em última análise, que reinventar uma cidade sobre os destroços de sua ruína.

[1] Instituída pela Resolução da Mesa Diretora nº 1.072/07 e presidida pelo Vereador Eliomar Coelho, a CPI do PAN 2007 foi obstruída pela maioria governista na Câmara Municipal, não chegando a ser instalada para proceder a apuração das denúncias.

[2] Reconhecida como uma das melhores edições dos Jogos Olímpicos em todos os tempos, a Olimpíada de Londres-2012 teve um custo total de cerca de 32 bilhões de reais.

A problemática da revitalização das áreas pericentrais urbanas: o caso do bairro de São Cristóvão no Rio de Janeiro

outubro 29, 2012

Planta da cidade do Rio de Janeiro e suburbios.190_ (detalhe)
Fonte: Biblioteca Nacional

1 INTRODUÇÃO:

O longo processo de abandono a que foram submetidas as áreas centrais e pericentrais das cidades brasileiras, produziu um quadro de esvaziamento econômico e populacional com graves conseqüências sobre o tecido urbano e social. Foram suprimidas as condições mínimas necessárias ao estabelecimento da vida urbana, desfazendo o complexo e delicado equilíbrio entre as funções urbanas cotidianas, responsável pelos índices de vitalidade verificados nos tecidos urbanos tradicionais (SANTOS, 1999 e JACOBS, 2000). Trata-se, como se sabe, de um injustificado desperdício dos investimentos coletivos historicamente acumulados nos centros históricos, que se apresentam, invariavelmente, como áreas já dotadas de infraestrutura e importantes vantagens locacionais sobre o conjunto da cidade, em função de constituírem antigas centralidades urbanas.

Entre os fatores que contribuíram de forma decisiva para o esvaziamento da área central no Rio de Janeiro, destacamos: a expansão urbana verificada a partir do século passado em direção aos bairros da Zona Sul (praias litorâneas) e Norte (subúrbios servidos pelos ramais ferroviários) e, mais recentemente, em direção à zona oeste; a consolidação do processo de especialização funcional da área central como centro de comercio e serviços da cidade; a mudança da capital federal para Brasília em 1960 e a fusão dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro em 1975, acarretando a perda do capital político e econômico da cidade; a promulgação do Decreto 322, em 1976, que consolidava o zoning funcional através da regulamentação do uso do solo urbano e proibia a função residencial na área central da cidade; e, concomitantemente a tudo isso, a opção pelo transporte motorizado com ênfase no automóvel particular que permitiu o espraiamento da cidade e a dispersão do tecido urbano em direção à zona oeste e à Baixada Fluminense.

Os efeitos deste processo estenderam-se para além dos limites oficiais do bairro central, atingindo áreas pericentrais que interagiam e dependiam diretamente das dinâmicas socioeconômicas verificadas no interior do núcleo urbano. Este é o caso dos bairros que circundam a área central da cidade do Rio de Janeiro e que foram sendo pouco a pouco transformados num cinturão de pobreza a volta do núcleo histórico. Os efeitos negativos do longo processo de esvaziamento da função residencial da área central, verificado ao longo do século passado, estenderam-se sobre os bairros da Gamboa, Saúde e Santo Cristo, Cidade Nova, Lapa e São Cristovão, todos situados no entorno do centro de comercio e negócios da cidade. Imersos, por assim dizer, numa “zona de sombra”, esses bairros vivenciaram um grave processo de estagnação urbana, desprovidos de investimentos públicos e alijados da dinâmica imobiliária da cidade.

O presente artigo toma como estudo de caso o bairro de São Cristóvão, buscando identificar os impactos produzidos pelo processo acima referido sobre o tecido urbano e social, vis a vis a forma urbana do bairro. A estratégia metodológica adotada prevê a análise dos marcos político-institucionais que impactaram as condições locais da vida urbana, bem como seus efeitos sobre o acervo edificado, sobretudo no que se refere ao patrimônio cultural existente.

Os marcos estudados pela pesquisa sucedem-se cronologicamente, estabelecendo correspondência direta com as transformações verificadas no tecido urbano e social da região.

2 DE ARRABALDE DISTANTE À CONDIÇÃO DE BAIRRO IMPERIAL

Até o século XIX os limites do núcleo urbano da cidade do Rio de Janeiro eram definidos pelos terrenos pantanosos do Mangal de São Diogo. Para além do alagado, encontravam-se as fazendas jesuíticas, compreendendo uma grande extensão de terra doada em sesmaria no ano de 1565 para a implantação de engenhos de cana-de-açúcar. Ali, em 1627, os jesuítas edificaram a Igrejinha dedicada ao culto de São Cristóvão, junto à praia que passou a ter o mesmo nome. Este pode ser considerado o primeiro marco arquitetônico associado à paisagem da região que haveria de perdurar, não obstante às reformas e ampliações sofridas pelo templo, ate os dias de hoje. No entorno imediato da igrejinha e sob sua proteção religiosa surgiu a pequena povoação de São Cristóvão.

Com a expulsão dos jesuítas do Brasil, em 1759, as terras das antigas fazendas foram divididas em chácaras e vendidas aos seus novos proprietários. Uma delas foi adquirida pelo comerciante Elias Antonio Lopes que mandou edificar um casarão sobre a parte mais elevado do terreno, de onde se podia contemplar a paisagem envolvente e usufruir da “boa vista” que deu nome à quinta. Considerada à época como a melhor moradia da cidade, seu proprietário não hesitou em doá-la para moradia da Família Real Portuguesa, quando de sua transferência para o Brasil, em 1808. Para adaptar a Quinta da Boa Vista às necessidades da família real foi encarregado o arquiteto inglês John Johnston que, além de conferir ares de Palácio Real ao antigo casarão (Palacete que hoje abriga o Museu Nacional), fez instalar um portão monumental em sua entrada (localizado atualmente na entrada principal do Jardim Zoológico, contíguo à Quinta da Boa Vista).

De arrabalde distante, situado para além dos limites da cidade, São Cristóvão, inegavelmente “enobrecido” com a presença da família real, se transforma, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, em nova fronteira de expansão urbana e de modernização da cidade, transformada agora em sede do Brasil Império. Assim, ao final do século XIX o bairro imperial de São Cristóvão, local de moradia da elite da época, abrigava luxuosos palacetes residenciais e grandes melhoramentos urbanos, tais como: a primeira rede de esgotos sanitários na cidade, inaugurada em 1862 pela empresa de capital inglês: Rio de Janeiro City Improvements Company Limited; a introdução do transporte por meio de bondes à tração animal (FREITAS, 2003); e, a partir de 1868, o novo jardim da Quinta da Boa Vista, projetados e implantados pelo paisagista francês Auguste Glaziou.

Desta primeira fase da cronologia histórica do bairro, restaram entre outros testemunhos importantes a antiga Casa da Marquesa de Santos (hoje Museu do Primeiro Reinado), o antigo Observatório Nacional (hoje abriga também o Museu de Astronomia) e a antiga Casa de Fazenda dos Jesuítas, transformada atualmente no Hospital dos Lázaros.

3 O OSTRACISMO REPUBLICANO DO ANTIGO BAIRRO IMPERIAL

Com a proclamação da República em 1889, inicia-se uma fase de perda de prestigio do antigo Bairro Imperial.  O Palácio da Quinta, já desprovido de suas características internas originais, torna-se a sede dos trabalhos da Assembléia Nacional responsável pela Constituição Brasileira de 1891. No ano seguinte o prédio passa a abrigar o Museu Nacional (que lá se mantém até os dias de hoje). Em 1909, após um longo período de abandono, os jardins da Quinta foram restaurados a mando do presidente Nilo Peçanha, conservando-se as características do projeto original de Glaziou.

Com o advento do Novo Regime, o Rio de Janeiro é elevado à condição de Distrito Federal e sede do governo republicano. Surgem com os novos tempos anseios de uma modernização que permitisse superar o passado, tanto colonial como imperial, e engajar o desenvolvimento da cidade no bojo do processo de industrialização em marcha nos países centrais. O liberalismo econômico será o condutor das reformas que se sucederão com o advento do novo sistema político.

A reforma urbana do Distrito Federal, implementada durante a administração do Prefeito Pereira Passos (1902-1906) produzirá grandes impactos sobre a forma urbana do Rio de Janeiro, com especial ênfase para o centro histórico. Seguindo o paradigma da modernização haussmaniana, Pereira Passos rasga o centro histórico com novas e amplas avenidas. Surgem novas construções afeiçoadas ao estilo arquitetônico do Ecletismo de cunho parisiense como o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, o Museu de Belas Artes e tantas outras, destinadas a compor o cenário arquitetônico das avenidas recém-inauguradas (DUARTE, 2009).

Contudo, os investimentos implementados na área central neste período foram incapazes de deter a evasão das elites em direção às praias litorâneas que já se insinuava como uma tendência. Fatores como o aumento da oferta de linhas regulares de transportes públicos entre o centro e bairros mais afastados, bem como a abertura da Avenida Beira-Mar, facilitando a ligação com as praias do Flamengo e de Botafogo, reforçariam significativamente a expansão da cidade em direção à zona sul carioca.

Para Freitas (2003), a Reforma Passos marca justamente o momento em que São Cristóvão inicia sua decadência como área residencial, sendo cada vez mais procurado para a instalação de indústrias. Tal prerrogativa decorria da disponibilidade de casarões servidos de infra-estrutura para a instalação desse tipo de atividade, da proximidade com o centro da cidade e com no novo Porto da Cidade, inaugurado em 1909, juntamente com a canalização da Avenida Francisco Bicalho. Deste modo, no final dos anos vinte, pode-se perceber em São Cristóvão o início do processo de industrialização que, embora insipiente, já anunciava alguns dos problemas a ser enfrentados pela bairro nas décadas subseqüentes, tais como o rebaixamento da qualidade de vida e a deterioração do patrimônio histórico edificado.

4 INDUSTRIALIZAÇÃO POR DECRETO

A década de 30 inicia sob os efeitos da crise mundial do capitalismo de 1929. Os prejuízos acarretados à agricultura brasileira, em função da queda dos preços no mercado internacional, com destaque para a produção cafeeira (que auferira uma safra excepcional naquele ano), somados à retração das exportações de bens de consumo e equipamentos pelos países centrais, representaram um estímulo para a expansão da indústria nacional, bem como para empresas estrangeiras já aqui instaladas.

O desemprego no campo produziu o deslocamento da força-de-trabalho liberada para as cidades e, em especial, para a Capital da República, que registra um expressivo crescimento populacional no período. Estimada, no início da década de 30, em 1.400.000 habitantes, a população da cidade do Rio de Janeiro atinge a cifra aproximada de 2.500.000 em 1950.

Contrapondo-se à aristocracia cafeeira, a Revolução de 30 preparou o caminho para a implantação do Estado Novo, em 1937, com grande centralização de poderes na pessoa de Vargas. A partir de então, assistiu-se à formação de uma aliança entre a burocracia estatal (civil e militar) e a emergente burguesia industrial, pactuada em torno do objetivo comum de promover a modernização do país, através do incremento da indústria nacional.

O espaço urbano da metrópole carioca se transformava rapidamente. Em busca de áreas mais apropriadas e mais baratas, os novos empreendimentos industriais, bem como as antigas indústrias tradicionalmente instaladas nas áreas centrais, começam a se mudar para os subúrbios, especialmente, aqueles servidos pelos ramais ferroviários então existentes.

A promulgação do Decreto-Lei 6.000/37 cria a primeira Zona Industrial da cidade, estendendo-se por uma faixa continua que vai do Bairro de São Cristóvão ate o bairro da Pavuna, na zona norte carioca.

Em 1940, foi inaugurada a Avenida Brasil, principal via de entrada e saída da cidade e, conseqüentemente, principal via de escoamento da produção do parque industrial recém-instalado no bairro. A aceleração da atividade industrial, atraindo veículos para o transporte de carga, juntamente com o movimento automotivo gerado pela Avenida Brasil, produziu profundas transformações na estrutura urbana, econômica e social do bairro, que se viu estimulado a ampliar a oferta de casas especializadas no comércio de auto-peças, acessórios, motores, serviços automotivos  e oficinas mecânicas.

Se, em seus efeitos mais gerais, o zoneamento industrial, proposto pelo Estado Novo, ratificou o processo de suburbanização da metrópole, numa escala mais reduzida, fez São Cristóvão ser considerado o primeiro bairro industrial da cidade e, em pouco tempo, também o mais poluído.

Datam ainda da década de 40 a instalação do Jardim Zoológico do Rio na Quinta da Boa Vista e o surgimento, no Campo de São Cristóvão, da Feira dos Nordestinos, inicialmente funcionando como ponto de encontro para a população trabalhadora recém-chegada do nordeste e que, em pouco tempo, viria a se tornar um ponto turístico e cultural da cidade, voltado para a divulgação da cultura, dos produtos e do artesanato nordestinos.

5 OS IMPACTOS SOBRE O TECIDO URBANO E AS TENTATIVAS DE SOLUÇÃO

Ao longo das décadas de 50 e 60 assiste-se a um redimensionamento operado pelo mercado das atividades industriais no bairro. A Avenida Brasil que, como via principal de acesso e saída da cidade, permitia o escoamento da produção e o incremento do transporte e da distribuição da produção do bairro, foi também a calha por onde se verificou a transferência das grandes indústrias de São Cristóvão e arredores para a periferia urbana, em função da valorização dos terrenos e da densificação dos espaços vazios, com a construção de instalações industriais ao longo daquela via expressa. Dessa forma, o parque industrial de São Cristovao vai se restringindo a empresas de pequeno e médio porte.

Por outro lado, sua localização estratégica, às margens de um entroncamento rodoviário de grande relevância na malha urbana da cidade, representado pelo encontro da Avenida Brasil, com a Avenida Francisco Bicalho e Rodrigues Alves (porto do Rio) e ainda, servida pelos ramais da Rede Ferroviária Federal, permitirá a São Cristóvão se consolidar como um bairro de passagem, especializado em atividades de comércio e serviços ligados, preponderantemente, aos setores automotivo e industrial.

Numa tentativa de interpretar e regular os processos acima resumidos, o  Decreto 322, de 1976, cria em São Cristóvão a Zona de Indústria e Comércio – ZIC, reforçando os usos industriais, restringindo os residenciais e incentivando a disseminação do pequeno comércio por quase todas as ruas do bairro, além de admitir as edificações de uso misto (comercial-residencial).

O Decreto 322//76, promulgado durante o período autoritário da Ditadura Militar (1964-85) não propõe uma reversão dos processos em curso de degradação da qualidade de vida e destruição do patrimônio arquitetônico e cultural do bairro. Antes, pelo contrário, ao pretender regulamentar as tendências do mercado, o Decreto apenas reforça e acentua aqueles processos.

Com o fim da Ditadura e o início da redemocratização da sociedade brasileira, as associações de moradores assumem a tarefa de pressionar o poder local no sentido de verem atendidas as demandas da população. Em São Cristovão verifica-se uma intensa mobilização da comunidade no sentido da construção de um diagnóstico sobre os problemas e da proposição de soluções para a melhoria das condições ambientais do bairro. Desta mobilização resulta o Decreto 5840/86, que transforma a Zona de Indústria e Comércio (ZIC) de São Cristóvão em cinco zonas residenciais, restringindo o uso industrial nas restantes (SILVA, 1990). Trata-se de uma tentativa de reestruturação da vida de bairro a partir do processo participativo que recomendava o reconhecimento, a valorização e a preservação da memória urbana e cultural representada pelo acervo edificado ainda existente naquela época, como alavanca da revitalização urbanística do bairro. Neste sentido, podemos considerar o Decreto 5840/86 como um Projeto de Estruturação Urbana (PEU), construído de forma participativa e democrática pela comunidade envolvida.

Contudo, os efeitos do Decreto, posteriormente transformado na Lei Lei nº 1.638 de 27 de Dezembro de 1990, não chegaram a produzir todos os resultados esperados. Já em 1992 surge a decisão do governo de construir a continuação do elevado Paulo de Frontin, seguindo pelo espaço aéreo das ruas Bela e Figueira de Melo em São Cristovão. O caráter imperativo da decisão encontrava suporte na necessidade de assegurar o livre deslocamento das delegações dos países participantes da Rio-92, do aeroporto do Galeão até o centro e à zona sul da cidade.

Dessa forma, surge em 1993 a Lei Complementar nº 24 (que faz a revisão da Lei nº 1.638 de 1990), como forma de legitimação da construção dos elevados que rasgaram o bairro de norte a sul, reduzindo a abrangência dos instrumentos de preservação do patrimônio cultural e liberando para renovação grande parte das edificações protegidas anteriormente. Tratava-se, evidentemente, de uma revisão que buscava apenas remediar o desastre urbanístico e ambiental produzido pela implantação dos viadutos da Linha Vermelha sobre os eixos da Rua Figueira de Melo e da Rua Bela, que comprometeram de forma quase irreversível as condições de vida em suas imediações.

Dez anos depois surge o Projeto de Estruturação Urbana de 2004 – PEU São Cristóvão, no bojo da redescoberta das vantagens locacionais das áreas centrais e pericentrais urbanas. Desde a década de oitenta os investimentos imobiliários estavam canalizados para a Barra da Tijuca na zona oeste, região que ostentava (e ainda ostenta) a maior taxa de crescimento da cidade. No entanto, os engarrafamentos diários e sempre crescentes contribuíram para fazer da Barra da Tijuca um destino longe demais do centro de negócios e serviços. São Cristóvão e Lapa ressurgem como campo de oportunidades para o mercado e para a especulação imobiliária. No caso de São Cristóvão assiste-se a elaboração do terceiro instrumento de regulação do uso do solo em menos de duas décadas (um fato absolutamente inédito na história da cidade). Desta vez o PEU visava atrair os interesses imobiliários. Tal poder de atração se traduziu basicamente na liberação do potencial construtivo e dos gabaritos que passam de 2 a 4 pavimentos para 12 pavimentos em áreas consideradas “nobres” do bairro. De fato, essas áreas passaram a constituir o Perímetro de Reabilitação Integrada (PRI), definido pela Prefeitura Municipal, onde se concentraram os incentivos legais para novos empreendimentos. De acordo com uma pesquisa divulgada em 2009 pela CONCAL (maior construtora envolvida no processo de “revitalização integrada” de São Cristóvão), o mercado imobiliário trabalha com a expectativa de criação de 5 mil novas unidades habitacionais até 2012, o que atrairá para o bairro cerca de 20 mil novos moradores.

Pode-se inferir da cronologia dos instrumentos legais propostos em 1986/90, 1993 e 2004 que ao maior grau de participação dos atores envolvidos correspondeu uma legislação (1986/90) mais democrática, legitimamente preocupada com os problemas identificados à escala da rua, com a melhoria das condições de vida cotidiana e com a preservação do patrimônio cultural edificado. Em sentido inverso, o PEU de 2004 privilegiou fundamentalmente os interesses de grupos empresariais comprometidos com a especulação imobiliária, transferindo ao Mercado e à Iniciativa Privada o comando das operações da revitalização pretendida.

A despeito do otimismo do mercado imobiliário, realimentado agora pelos investimentos esperados como parte dos preparativos para a Copa do Mundo de 2012 e a Olimpíadas de 2016, o bairro de São Cristóvão segue envolto num processo de degradação urbana e de fragmentação do tecido urbano e social. Queixas quanto à poluição ambiental provocada pelo fluxo intenso dos veículos automotivos, a insegurança permanente nas ruas do bairro, a destruição ou ruína do patrimônio cultural ainda existente, bem como a ausência de investimentos destinados a requalificação dos espaços públicos e de convivência cotidiana são, de um modo geral, a expressão consensual da percepção externalizada pelos moradores e usuários locais. E nada, no horizonte próximo, parece indicar qualquer tentativa por parte do Poder Público Local de mediação dos interesses em jogo, sobretudo os interesses dos atuais moradores que se mostram, muitas vezes, antagônicos aos do mercado imobiliário.

O que está em jogo, segundo a premissa teórica que embasa este trabalho, é a necessária afirmação da função social da propriedade urbana e do valor de uso dos espaços, em contraposição ao valor de troca da “forma-mercadoria”, de que nos fala Arantes (1998). O valor de uso, que implica em “apropriação”, reaparece nas práticas sócio-espaciais cotidianas, resistindo e se opondo ao valor de troca, que implica em “propriedade” (LEFEBVRE, 2000, p. 411). Tal estratégia de ação pressupõe, simultaneamente, o reconhecimento da identidade cultural da cidade, expressa na sua configuração sócio-espacial historicamente produzida e a afirmação do desenvolvimento econômico aliado ao desenvolvimento social, como condição imprescindível para se alcançar os objetivos pretendidos da sustentabilidade ambiental urbana.

6 REFERÊNCIAS

ARANTES, Otília B. Fiori. Urbanismo em fim de linha. São Paulo: EDUSP, 1998.

BARANDIER, Henrique et alli. Reabilitação do bairro de São Cristóvão – Levantamento no Espaço Físico. Rio de Janeiro: Caixa Econômica, 2004.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. Espaço-tempo na metrópole: a fragmentação da vida cotidiana. São Paulo: Contexto, 2001.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: Editora UNESP, 2001.

DUARTE, C. F. Industrialização e suburbanização da metrópole carioca (1930-1950) In: Mostra Internacional Rio Arquitetura. 1 ed.Rio de Janeiro : Documenta Histórica, 2007, v.1, p. 28-31.

_________. Lapa: abrigo e refúgio da cultura popular carioca. In: XIII Encontro Nacional da ANPUR ENANPUR, 2009, Florianópolis. Anais do XIII Encontro Nacional da ANPUR: Planejamento e Gestão do Território, 2009.

JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

LEFEBVRE, Henri. La revolucion urbana. Madri: Alianza Editorial, 1972.

_________. La production de l’espace. Paris: Ed. Anthropos, 2000.

FREITAS, Viviani de Moraes. Das trevas às luzes? : transformações de uso e propostas de reestruturação do bairro de São Cristóvão no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.

RIBEIRO, Ana Clara Torres. A natureza do poder: técnica e ação social, Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v.4, n.7, pp. 13-24, 2000.

ROSSI, Aldo, A arquitectura da cidade. Lisboa: Edições Cosmos, 1977.

SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. A cidade como um jogo de cartas. Niterói: Universidade Federal Fluminense: EDUFF; São Paulo: Projeto Editores, 1988.

Sustentabilidade e apropriação dos espaços históricos revitalizados

abril 16, 2011

Paul Klee (Rose Garden, 1920)

A revitalização de conjuntos urbanos em sítios históricos vem se afirmando como um anseio legítimo de um número cada vez maior de setores da sociedade brasileira, como forma de proteção do patrimônio cultural e promoção da melhoria da qualidade-de-vida em suas cidades.

Podemos creditar essa tomada de consciência ao processo de consolidação da democracia em nosso país, que, ao longo dos últimos 20 anos, já permite contabilizar uma série de conquistas importantes. Esse processo tem levado à ampliação dos canais de participação direta e das formas de representação democráticas, através dos quais a sociedade civil organizada vem conseguindo explicitar e discutir suas reivindicações e, assim, interferir nas decisões políticas concernente aos interesses da coletividade.

No campo da preservação do Patrimônio Cultural verificamos, como reflexo direto deste debate, travado atualmente pela sociedade, o amplo espaço dedicado pela mídia ao assunto (jornais, revistas, rádio, televisão), a produção acadêmica por parte dos especialistas da área e, ainda, a inserção de temas relativos ao Patrimônio Cultural nas ementas das disciplinas do Ensino Fundamental e Médio, bem como a existência de disciplinas específicas de preservação na grade curricular dos cursos superiores de Arquitetura e Urbanismo do país.

Em seu artigo 216, a Constituição Federal, promulgada em 1988, atribui ao Poder Público a obrigação de, juntamente com a colaboração da comunidade, promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro. Entre os avanços registrados na Carta Magna com relação à proteção do patrimônio, caberia destacar, ainda no mesmo artigo acima citado, a introdução da noção de “conjuntos urbanos e sítios de valor histórico” como partes constitutivas do patrimônio cultural brasileiro. Muito embora o texto legal tenha apenas ratificado uma prática já adotada a nível federal pelo IPHAN, a normatização jurídica deste alargamento conceitual no campo de patrimônio cultural propiciou uma maior atenção aos centros históricos das cidades brasileiras, sobretudo no âmbito das administrações públicas municipais e estaduais.

Caberia, igualmente, destacar a recente promulgação do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257, de 10/10/2001) que afirmou, entre outros dispositivos, a obrigatoriedade do pleno desenvolvimento das “funções sociais da cidade e da propriedade urbana”, assegurando “proteção, preservação e recuperação ao meio ambiente natural e construído e ao patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico”. As novas exigências aos gestores públicos, explicitadas pelo Estatuto da Cidade, se fizeram acompanhar da criação de novos instrumentos urbanísticos, abrindo numerosas possibilidades de parceria e consorciação entre o poder público e a iniciativa privada, para a implementação de uma política urbana sustentável para as cidades brasileiras.

Muitas prefeituras municipais encontram-se hoje empenhadas no desenvolvimento de planos e projetos para as áreas históricas sob sua jurisdição. As pressões da opinião pública e as perspectivas de retorno institucional através do “marketing político-eleitoral” fizeram do tema da revitalização dos centros históricos um item, praticamente, obrigatório na agenda política das atuais administrações públicas municipais.

Acrescente-se, ainda, o reconhecimento de cidades brasileiras como patrimônio da humanidade pela UNESCO, como foram os casos de Ouro Preto (1980), Olinda (1982), Salvador (1985), Brasília (1987), São Luís (1997), Diamantina (1999) e Goiás (2001), cuja repercussão na mídia e junto à opinião pública constituiu, também, uma significativa contribuição para o aumento do interesse geral em torno da preservação de sítios históricos urbanos.

Não se trata, entretanto, de um objetivo fácil de ser alcançado. A complexidade e a abrangência dos programas de revitalização, bem como a viabilização dos recursos necessários a sua implementação constituem os principais entraves para as administrações públicas de muitas cidades brasileiras.

A problemática da revitalização urbana

Não obstante o amadurecimento da consciência preservacionista da sociedade brasileira e as conquistas obtidas no campo legal, o processo de degradação das áreas urbanas centrais permanece como um problema comum, compartilhado pela grande maioria das cidades históricas brasileiras.

O longo processo de abandono a que foram submetidas as áreas centrais históricas das cidades brasileiras, produziu um quadro de esvaziamento econômico e populacional com graves conseqüências sobre o tecido urbano e social. Foram suprimidas as condições mínimas necessárias ao estabelecimento da vida urbana, desfazendo o complexo e delicado equilíbrio entre as funções urbanas cotidianas, responsável pelos índices de vitalidade verificados nos tecidos urbanos tradicionais (SANTOS, 1999 e JACOBS, 2000). Trata-se, como se sabe, de um injustificado desperdício dos investimentos coletivos historicamente acumulados nos centros históricos, que se apresentam, invariavelmente, como áreas já dotadas de infraestrutura e importantes vantagens locacionais sobre o conjunto da cidade, em função de constituírem antigas centralidades urbanas.

Apesar do grande interesse da sociedade e das administrações públicas com relação à recuperação dos centros históricos, verifica-se uma resistência generalizada por parte da população local em voltar a residir nas áreas centrais. Da mesma forma, salvo em casos excepcionais, não tem sido imediata, nem fácil, a adesão da iniciativa privada aos programas de revitalização implementados pelo Poder Público.

Parte do acervo histórico edificado simplesmente desapareceu ou se arruinou. As edificações ainda existentes nas áreas históricas encontram-se, na grande maioria dos casos, em péssimo estado de conservação, demandando intervenções técnicas especializadas que implicam, muitas vezes, em complexos projetos de consolidação estrutural e restauração arquitetônica dos imóveis, incluindo a completa renovação das instalações prediais (redes hidro-sanitárias, elétricas, etc).

Outra questão importante, relativa à preservação dos centros históricos, refere-se à viabilização dos recursos financeiros requeridos para a implementação dos programas de revitalização, que persiste como um obstáculo a ser ultrapassado em muitas cidades. Entre as alternativas encontradas pelas administrações públicas estão os programas institucionais de incentivo à Cultura e as linhas especiais de financiamento oferecidas por organismos nacionais e internacionais para intervenção em conjuntos urbanos históricos. Contudo, a arrecadação pública ou a capacidade de endividamento das prefeituras e governos estaduais não podem, e não devem, ser as únicas fontes de financiamento disponíveis para tais programas. Somente uma ação articulada entre o Poder Público (nos três níveis de governo) e a sociedade, solidamente apoiada numa estratégia de desenvolvimento econômica e socialmente sustentável, poderá assegurar, a curto, médio e longo prazo, os investimentos públicos e privados necessários à recuperação e revitalização do tecido urbano e social dos centros históricos.

Em que pesem as dificuldades acima aludidas, bem como a abrangência e a complexidade envolvidas nos programas de revitalização, assistimos, sobretudo, ao longo das últimas duas décadas, importantes experiências implementadas pela administração pública em centros históricos de algumas cidades brasileiras.

Os resultados obtidos, no entanto, não têm se demonstrado econômica e socialmente sustentáveis ou, mesmo, inteiramente aceitáveis com relação aos critérios de preservação adotados pelos órgãos responsáveis pela proteção do patrimônio cultural. De acordo com a Diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial do IPHAN, arquiteta Marcia Sant’Anna, “(…) continua-se a privilegiar valores cenográficos e a negligenciar outros que testemunham processos passados de produção do espaço e dizem respeito à função cultural do patrimônio” (SANT’ANNA, 2001).

Analisando experiências nacionais e internacionais de revitalização em centros históricos, Otília Arantes vaticina que “os centros restaurados acabaram se convertendo em cenários para uma vida urbana impossível de ressuscitar (…) uma verdadeira consagração da eternidade da cena – bem polida, limpa, enfeitada, transformada ela mesma em museu” (ARANTES, 1998, pp. 135-6). Para a autora, o grande produtor dos novos espaços urbanos é o “Capital em pessoa”, que imprime na fisionomia das cidades, através dos projetos de requalificação urbana, a “forma-publicidade da mercadoria” (Ibid., p. 138).

Para os especialistas da área de preservação do Patrimônio Cultural a dificuldade está em se encontrar o ponto de equilíbrio entre os interesses econômicos em jogo e os critérios de preservação adotados, evitando-se, assim, a construção meramente cenográfica de uma “nova imagem urbana” em detrimento dos valores culturais de rememoração inerentes aos conjuntos históricos edificados (CHOAY, 2001.).

Percebe-se, no entanto, que esse debate tem sido permeado por uma certa radicalização de caráter reciprocamente defensivo, confrontando de um lado posições conservadoras por parte dos orgãos oficiais de proteção e, de outro, as exigências do mercado por parte dos empreendedores, ambas igualmente dogmáticas e reducionistas. Enquanto isso, antigas e, talvez, incômodas perguntas tais como: o quê preservar (?), por que preservar (?), como preservar (?) e, para quem preservar (?), continuam sem respostas satisfatórias.

Sustentabilidade e apropriação dos espaços revitalizados

A cidade contemporânea apresenta-se como a cidade dos guetos e das barricadas, segregando as diferenças sociais no espaço, através dos processos de fragmentação, homogeneização e de privatização do espaço público. Não por acaso, os processo de revitalização das áreas centrais urbanas costumam promover a chamada “gentrificação” dos espaços requalificados, com a expulsão de seus moradores tradicionais. Essa lógica instrumental assenta-se na própria negação da cidade, como o lugar do encontro entre os diferentes, tal como fora historicamente instituída (LEFEBVRE, 1972).

Podemos afirmar, portanto, que o processo de degradação dos centros históricos das cidades brasileiras é também um dos sintomas de uma crise maior, envolvendo a cidade como um todo. O que está ameaçado, em última análise, não é apenas a preservação do patrimônio histórico e cultural, mas a própria sobrevivência de um tipo de sociabilidade eminentemente urbana, baseada na apropriação coletiva dos usos do espaço e do tempo.

Nesse sentido caberia perguntar: – como falar em conservação e revitalização urbana sustentáveis do Patrimônio Histórico numa cidade insustentável sob todos os pontos de vista? Poderemos pensar nossos centros históricos como “ilhas urbanas” cercadas de destruição por todos os lados?

Acreditamos que pensar soluções para a revitalização das áreas históricas implica em considerar também o contexto urbano ampliado em que elas se inserem. De nada adiantará a recuperação físicas das estruturas históricas ou a construção de “uma nova imagem urbana”, se não forem criadas as condições necessárias ao pleno desenvolvimento urbano da área em estudo. Seguindo nesta linha de raciocínio, Brito (2003) propõe o conceito de “reabilitação urbana”, afirmando que a requalificação das áreas centrais implica, necessariamente, em intervenções destinadas a valorizar suas potencialidades funcionais e socioeconômicas e, conseqüentemente, melhorar as condições de vida da população local.

A reabilitação, através da requalificação urbanística dos espaços, que vai muito além da simples restauração arquitetônica ou estrutural do acervo edificado, passa a ser, então, condição prévia indispensável aos objetivos da revitalização urbana do tecido urbano e social. Trata-se, sobretudo, da necessidade de se conjugar ações estratégicas de gestão urbana visando dotar as áreas sob intervenção das condições de habitabilidade, conforto e segurança, de modo a que voltem a constituir pólos de atração não apenas para moradores e usuários dos serviços urbanos ali oferecidos, mas também para investimentos da iniciativa privada.

O que está em jogo, em última análise, é a necessária afirmação da função social da propriedade urbana e do valor de uso dos espaços, em contraposição ao valor de troca da “forma-mercadoria”, de que nos fala Arantes (op.cit.). O valor de uso, que implica em “apropriação”, reaparece nas práticas sócio-espaciais cotidianas, resistindo e se opondo ao valor de troca, que implica em “propriedade” (LEFEBVRE, 2000, p. 411).

Duas perspectivas teóricas alicerçam essa estratégia de ação: a primeira diz respeito à afirmação da identidade cultural da cidade, expressa na sua configuração sócio-espacial historicamente produzida; a segunda perspectiva teórica assume que o desenvolvimento econômico deve caminhar pari passu com o desenvolvimento social, como condição imprescindível para se alcançar os objetivos pretendidos da sustentabilidade.

Preservar o Patrimônio Histórico significa preservar valores culturais em processo de transformação permanente. Para que sejam preservados, esses valores devem estar sempre sendo atualizados e reapropriados pela sociedade, através das práticas socioespaciais cotidianas. Não se deve confundir a preservação do Patrimônio Cultural com a preservação do Passado: o Passado é justamente aquilo que não deve ser preservado, mas superado. O futuro nunca será igual ao passado. Qualquer tentativa em contrário equivaleria a uma utopia regressiva, eivada de nostalgia e, portanto, fadada ao insucesso como nos comprova a própria História.

Concluo com uma citação de Françoise Choay, para quem, mais importante do que a conservação do patrimônio seria “a conservação de nossa capacidade de lhe dar continuidade e de substituí-lo” (op. cit., p. 257).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANTES, Otília B. Fiori. Urbanismo em fim de linha. São Paulo: EDUSP, 1998.

BRITO, Marcelo.“Pressupostos da reabilitação urbana de sítios históricos no contexto brasileiro”, in: Anais do Seminário Internacional sobre Reabilitação Urbana de Sítios Históricos. Brasília, setembro de 2003.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: Editora UNESP, 2001.

DUARTE, Cristovão Fernandes.  Forma e movimento. Rio de Janeiro: Viana & Mosley; Ed. PROURB, 2006.

LEFEBVRE, Henri. La revolucion urbana. Madri: Alianza Editorial, 1972.

_________. La production de l’espace. Paris: Ed. Anthropos, 2000.

SANT’ANNA, Márcia.”El Centro Histórico de Salvador de Bahia: paisaje, espacio urbano y patrimônio”, publicado em Fernando Carrión (editor), Centros Históricos de América Latina y el Caribe. Quito: UNESCO/BID/MCC/FLACSO, 2001, pp. 177-197.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: espaço e tempo: razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1999.

________________________

NOTA: texto originalmente publicado conforme referência a seguir:

DUARTE, C. F.. Sustentabilidade e apropriação dos espaços históricos revitalizados. In: 7o. FÓRUM DE PESQUISA FAU – MACKENZIE, 2011, São Paulo. Fórum de Pesquisa FAU-Mackenzie. São Paulo: Mackenzie, 2011.

Aparência e significado

abril 10, 2011

Escher (Relativity, 1953)

A tentativa, em curso neste artigo, de uma leitura da forma urbana que ultrapasse as dificuldades implícitas nas representações construídas sobre o mundo das aparências, impõe a necessidade de distanciamento crítico com relação ao objeto em estudo. Deste modo, a reflexão que se segue discute as relações passíveis de serem estabelecidas entre forma e conteúdo, visando apreender o movimento do pensamento que parte da aparência visível das coisas para, através das operações de abstração, restituir os seus significados.

1.1 – A verdade provável das coisas

O mundo dos objetos é, para Sartre, o mundo do provável[1] (1962, p. 264). Os objetos, naturais ou fabricados, existem como coisas no mundo físico. São dotados de materialidade, contornos, cores, volume, extensão. Como coisas, apresentam uma presença e uma inércia formal que não dependem da espontaneidade nem da minha, nem de outra consciência (Id., 1987, p. 35). Existem fora da consciência e são por ela visadas através da percepção. Aquilo que percebemos não se confunde com a coisa. Não é senão a sua imagem, facultada pela aparência da coisa e produzida pela consciência. Apreender o real significa, necessariamente, convertê-lo em imagem. Não podemos, entretanto, substituir o mundo das coisas pelas imagens que, a partir das coisas, formamos. Tal engano, decorrente da “ilusão de transparência”, redundaria numa forma de idealismo (LEFEBVRE, 2000, pp. 36-7). A potência criadora da consciência não se traduz pela negação da realidade, mas por sua capacidade de interagir e transformar essa realidade. Nesse sentido, a imagem é, para Sartre, uma “coisa menor, inferior, que tem existência própria, que se dá à consciência como coisa e que mantém relações externas com a coisa da qual é imagem” (op. cit., p. 37). Com esta definição Sartre se opõe àquela “metafísica ingênua da imagem” que pressupõe, equivocadamente, a imagem como cópia fiel da coisa existente.

Para Husserl, toda consciência é a consciência de alguma coisa, assim como, toda imagem é a imagem de alguma coisa (Apud. SARTRE, op. cit., p. 99). A percepção estabelece com o real uma relação de intencionalidade, na medida em que não pode prescindir do conceito de que está imbuída. Se a intencionalidade é o móvel da consciência, podemos descrever o ato da percepção como um ato de vontade consciente. É a idéia que comanda a experiência e não o contrário. Segue-se, portanto, que toda imagem é, também, a consciência de alguma coisa (Ibid., p. 107). Os fenômenos somente podem se manifestar para a consciência, e serem por ela visados, através da sua aparência. Não existe outra realidade para além do fenômeno: o ser de um existente qualquer será sempre o ser-aparência do fenômeno percebido. A aparência torna-se, então, uma forma de conhecimento sobre o existente das coisas; a única evidência verificável da sua existência concreta.

“A essência aparece; a aparência é essencial” (LÊNIN, apud. LEFEBVRE, 1983, p. 294). Com esta frase, Lênin enuncia o princípio através do qual o pensamento dialético supera a contradição entre a manifestação dos fenômenos e seu significado concreto. A essência das coisas se manifesta para a percepção através da aparência. Assim, na aparência das coisas já estão implicados, simultaneamente, a essência da coisa e o sujeito da percepção, em sua interação com o real. Mas o pensamento dialético não se deixa aprisionar pela aparência. Esta será apenas o ponto de partida necessário para o curso do pensamento que visa o conhecimento. Indo da aparência à essência, o pensamento aprofunda o conhecimento. Mas a essência revelada na aparência, pela ação do pensamento, já não pode ser mais do que uma etapa, um novo momento da produção do conhecimento. Segue-se então, que esta essência, refletida na aparência primeira da coisa, se torna agora reflexo de novos conteúdos. Tornada provisória no curso incessante do pensamento, a essência alcançada transforma-se, também ela, em ponto de partida para novos e sucessivos desdobramentos. Nesse movimento, que demarca estágios progressivos no processo do conhecimento, a essência volta a ser aparência. Ou, como nos mostra Lefebvre, a essência que nasce e se forma através de suas manifestações também se esgota nelas: “em si, a essência é apenas a totalidade das aparências” (op. cit., p. 219).

Para o pensamento, esta é a única chave possível para o conhecimento do real. A recusa desta chave permitiu o surgimento de duas correntes do pensamento metafísico – o ceticismo e o idealismo, igualmente incapazes de compreender o real (Ibid., p. 216). Para o ceticismo, a objetividade inalcançável da coisa em-si aprisiona o pensamento no imediato da percepção sensível, tornando o conhecimento, em última análise, uma impossibilidade. Para o idealismo, a aparência ilusória dos fenômenos obriga o pensamento a recusar o mundo da experiência sensível, impondo-se um exílio voluntário. Retirando-se do real e fechando-se nele mesmo, o pensamento se torna absoluto. Ao pretender alcançar as verdades transcendentais absolutas, o idealista transforma o conhecimento em abstração vazia.

O conhecimento verdadeiro decorre, portanto, da atividade do pensamento que recusa as evidências (sem, no entanto, negá-las), penetrando cada vez mais profundamente no real. Um pensamento que não se fecha em si mesmo, mas que se abre ao mundo; que vai ao mundo interagir com as coisas e os seres vivos. Um pensamento que surpreende e revela a essência no exato momento em que ela se oculta, como reflexo, na aparência das coisas. Podemos então dizer, com Sartre, que “o mundo real não é, mas se faz, sofre incessantes retoques, se suaviza, se enriquece” (1987, p. 80). Com Merleau-Ponty, que “a profundidade é sempre nova” (1969, p. 80). E, finalmente, com Lênin, que “não apenas as aparências são passageiras, móveis, separadas por limites condicionais; também as essências o são” (LÊNIN, apud. LEFEBVRE, 1983, p. 294). O conteúdo concreto das coisas não está determinado de uma vez por todas, mas em permanente construção.

1.2 – O conteúdo concreto da abstração

A produção do conhecimento constitui uma atividade prática (LEFEBVRE, op. cit., p. 49). Tomar consciência do mundo significa, num certo sentido, participar da sua produção/invenção. De acordo com Lefebvre, toda ação produtiva age no sentido de “separar um objeto definido da enorme massa do universo material” (1957, p. 104). Os nomes que atribuo às coisas, as formas através das quais eu as identifico, as medidas com as quais eu as relaciono e comparo, são modos de “recortar” o meu objeto e transformá-lo num objeto de pensamento. Essas coisas passam a constituir produtos do trabalho humano, momentaneamente isolados do todo. Ao visar um objeto, a consciência imobiliza um determinado aspecto do objeto, realizando, através da percepção, uma operação de abstração. Nesse sentido, a abstração pode ser vista como uma técnica do pensamento que separa os objetos da totalidade em que se encontram inseridos. A abstração decorre, portanto, de uma atividade prática e essencialmente produtiva. No entanto, um objeto isolado só pode ser concebido como um momento do movimento incessante que se estabelece entre o pensamento e o real. O abstrato só adquire sentido em oposição dialética ao concreto. O real não é imediatamente acessível. O real é a totalidade. Penetrar no real significa fragmentar essa totalidade inacessível para então recompô-la através da razão. A abstração será, então, apenas o ponto de partida necessário para a produção de conhecimento sobre o real.

As impressões sensíveis da percepção imediata já implicam em processos de abstração. Nesse sentido, não se pode estabelecer uma separação rígida entre as sensações e o entendimento. Na percepção, as sensações não ocorrem desligadas das escolhas, das preferências e das vivências do indivíduo. De acordo com Lefebvre, a sensação torna-se um momento interno da percepção, entendida como um todo (1983, p. 107).

Conhecer o real, através do pensamento, pressupõe, no entanto, a superação do sensível imediato da percepção. A abstração surge como indutora do seu contrário. A momentânea dissolução do real operada pela abstração torna-se, assim, uma etapa imprescindível para a irrupção do concreto. Mas, o concreto que irrompe sob o véu da abstração é sempre um concreto provisório. A totalidade recomposta pela razão jamais poderá coincidir com a totalidade exterior do mundo material. O processo de produção do conhecimento visa a totalidade do real, tende para ela, mas alcançá-la de uma vez por todas significaria o fim do movimento dialético que confere sentido ao próprio conhecimento verdadeiro. Uma vez atingida, a totalidade produzida pelo pensamento se torna, outra vez, momento deste pensamento, dando lugar à abstração que, por sua vez, fecundará a possibilidade de construção de uma nova totalidade. O processo dialético é aproximativo e sem fim. É dessa forma que, ainda segundo Lefebvre, o movimento do pensamento se torna o pensamento de um movimento, consciente das contradições do real (op. cit., p. 178).

1.3- Forma do conteúdo e conteúdo da forma

Forma e conteúdo se apresentam, tal como o abstrato e o concreto, como uma contradição dialética. Forma sem conteúdo é uma abstração vazia. É o conteúdo que determina a forma, mas uma forma não é nunca, salvo para o olhar desatento do senso comum, inteiramente adequada ao conteúdo. Como mensageira do mundo da aparência, a forma é ilusória; ela oculta o conteúdo que a determina. Mas a ocultação do conteúdo concreto não é a eliminação do conteúdo; ele subsiste como negação. Se foi na aparência sensível das coisas que o conteúdo se ocultou, é aí que ele deve ser procurado. A forma que oculta é também a forma que revela. Esse movimento, que vai do conteúdo à forma e da forma ao conteúdo, pressupõe um processo de transformação do pensamento e, portanto, o conteúdo revelado através da forma do objeto já implica na superação dialética do conteúdo original. Deste modo, a forma tornada, momentaneamente, um instrumento de decifração do real, constituirá, ela própria, uma etapa necessária do processo de construção do conhecimento.

As reflexões teóricas acima desenvolvidas devem agora permitir a retomada do tema da forma sob o prisma da morfologia urbana. Para a arquitetura, produzir uma forma significa concretizar uma idéia, dar-lhe uma existência objetiva através de um suporte material. Uma vez produzida, a forma, produto da resistência que a matéria opõe à idéia, não apenas se revela como algo distinto do conteúdo que lhe deu origem, como se autonomiza com relação a esse conteúdo, passando a abrigar novos conteúdos. O gesto que transforma a matéria, que lhe impõe recortes definidos, que individualiza um objeto entre os demais, é, nesse sentido, análogo ao ato do pensamento que opera a abstração. E, no entanto, é dessa operação de emprestar forma às coisas que resulta, em toda a sua concretude, o novo objeto produzido. A forma, assim como a abstração, é produto e produtora. Constitui, simultaneamente, o ponto de chegada de um processo de transformação da matéria bruta segundo uma intenção, e o ponto de partida para a produção de novas idéias. Submetida à idéia, através do trabalho humano, a matéria assume uma forma concreta (produto-coisa); ao interagir com o objeto produzido, o sujeito  produz uma forma abstrata (produto-imagem). Segue-se assim, que a forma, tendo a materialidade como suporte, passa, também ela, a ser o suporte de significados culturais decorrentes das práticas sociais que sobre ela incidem.

A forma urbana não se reduz, portanto, à materialidade do espaço construído. A forma consiste no resultado da operação que, dotando de contornos definidos e mensuráveis a matéria, produz objetos portadores de uma intencionalidade reconhecível, seja de ordem prática, seja de ordem estética. A forma torna a materialidade operacional e comunicante. Formalizados, os objetos tornam-se virtualmente aptos para o desempenho das funções a eles destinadas ou atribuídas. Para que os objetos funcionem não basta, no entanto, que eles estejam formalmente aptos. É necessário que sobre eles incidam as ações. São, portanto, as ações que se encarregam de atualizar os objetos, realizando, através das formas, as funções. O ajuste entre a ação incidente e o objeto agido, implica em um duplo movimento: a forma predispõe o objeto para a ação que, por sua vez, deve se submeter também à forma existente. Assim, na medida em que o funcionamento dos objetos depende fundamentalmente da forma que possuem, podemos dizer que a forma assume a condição de intermediária indispensável entre os objetos e as ações, isto é, entre os fixos e os fluxos. Os fixos, entendidos aqui como o conjunto de objetos móveis e imóveis que, articulados entre si, compõem  a paisagem urbana; e os fluxos, como o resultado direto ou indireto das ações empreendidas pelos homens visando o atendimento de suas necessidades: naturais ou criadas, legítimas ou impostas, materiais ou imateriais, que, sem prescindir também de sua carga simbólica, comandam o processo como um todo.

A forma, responsável pela mediação entre os fluxos e os fixos, pertence, então simultaneamente, aos dois mundos. Aderida e imbricada à materialidade do objeto que lhe serve de suporte, a forma compartilha com os fixos a inércia, a estabilidade, a durabilidade, a textura e o “mutismo” da matéria. Tais características permitem que as formas, através da duração de sua existência física, sobrevivam ao desaparecimento das funções originais a ela associadas. Veja-se, por exemplo, a redescoberta de um vestígio arqueológico, soterrado por centenas (às vezes milhares) de anos. Durante o período de ocultamento o objeto, impossibilitado para o uso, manteve-se submetido exclusivamente às forças da natureza. A resistência então oferecida pelo objeto deveu-se à matéria de que é feita o seu suporte, mas também à técnica de fabricação utilizada e à forma que recebeu o objeto. Sabe-se que a forma, modelando a superfície dos objetos (e, portanto, associada também ao emprego da técnica), pode contribuir significativamente para aumentar a resistência dos materiais[2]. Assim é que a forma, a técnica e a matéria comparecem como partes integrantes e indissolúveis da constituição dos objetos. Uma vez reencontrado o objeto arqueológico do exemplo empregado, o mutismo da matéria é, por assim dizer, encoberto e suplantado pela eloqüência comunicativa da forma. Em muitos casos, a datação por “Carbono 14” realizada através da estrutura molecular do suporte, vem apenas confirmar o que já fora antecipadamente revelado pela forma do objeto. Para o arqueólogo as formas contêm os vestígios das ações humanas, possibilitando, através do seu estudo, revelar a época e as características da sociedade que as produziu e utilizou. Retornando “ao mundo dos vivos”, o objeto reencontrado se presentifica, atualizando-se, através de sua forma, em novas funções, ainda que seu uso se restrinja, pela necessidade de proteção da materialidade de seu suporte, à pesquisa científica ou à visitação pública, como peça de uma coleção museográfica.

A tentativa, em curso artigo, de uma leitura da forma urbana que ultrapasse as dificuldades implícitas nas representações construídas sobre o mundo das aparências, impõe a necessidade de distanciamento crítico com relação ao objeto em estudo. Deste modo, a reflexão que se segue discute as relações passíveis de serem estabelecidas entre forma e conteúdo, visando apreender o movimento do pensamento que parte da aparência visível das coisas para, através das operações de abstração, restituir os seus significados.

1.1 – A verdade provável das coisas

O mundo dos objetos é, para Sartre, o mundo do provável[1] (1962, p. 264). Os objetos, naturais ou fabricados, existem como coisas no mundo físico. São dotados de materialidade, contornos, cores, volume, extensão. Como coisas, apresentam uma presença e uma inércia formal que não dependem da espontaneidade nem da minha, nem de outra consciência (Id., 1987, p. 35). Existem fora da consciência e são por ela visadas através da percepção. Aquilo que percebemos não se confunde com a coisa. Não é senão a sua imagem, facultada pela aparência da coisa e produzida pela consciência. Apreender o real significa, necessariamente, convertê-lo em imagem. Não podemos, entretanto, substituir o mundo das coisas pelas imagens que, a partir das coisas, formamos. Tal engano, decorrente da “ilusão de transparência”, redundaria numa forma de idealismo (LEFEBVRE, 2000, pp. 36-7). A potência criadora da consciência não se traduz pela negação da realidade, mas por sua capacidade de interagir e transformar essa realidade. Nesse sentido, a imagem é, para Sartre, uma “coisa menor, inferior, que tem existência própria, que se dá à consciência como coisa e que mantém relações externas com a coisa da qual é imagem” (op. cit., p. 37). Com esta definição Sartre se opõe àquela “metafísica ingênua da imagem” que pressupõe, equivocadamente, a imagem como cópia fiel da coisa existente.

Para Husserl, toda consciência é a consciência de alguma coisa, assim como, toda imagem é a imagem de alguma coisa (Apud. SARTRE, op. cit., p. 99). A percepção estabelece com o real uma relação de intencionalidade, na medida em que não pode prescindir do conceito de que está imbuída. Se a intencionalidade é o móvel da consciência, podemos descrever o ato da percepção como um ato de vontade consciente. É a idéia que comanda a experiência e não o contrário. Segue-se, portanto, que toda imagem é, também, a consciência de alguma coisa (Ibid., p. 107). Os fenômenos somente podem se manifestar para a consciência, e serem por ela visados, através da sua aparência. Não existe outra realidade para além do fenômeno: o ser de um existente qualquer será sempre o ser-aparência do fenômeno percebido. A aparência torna-se, então, uma forma de conhecimento sobre o existente das coisas; a única evidência verificável da sua existência concreta.

“A essência aparece; a aparência é essencial” (LÊNIN, apud. LEFEBVRE, 1983, p. 294). Com esta frase, Lênin enuncia o princípio através do qual o pensamento dialético supera a contradição entre a manifestação dos fenômenos e seu significado concreto. A essência das coisas se manifesta para a percepção através da aparência. Assim, na aparência das coisas já estão implicados, simultaneamente, a essência da coisa e o sujeito da percepção, em sua interação com o real. Mas o pensamento dialético não se deixa aprisionar pela aparência. Esta será apenas o ponto de partida necessário para o curso do pensamento que visa o conhecimento. Indo da aparência à essência, o pensamento aprofunda o conhecimento. Mas a essência revelada na aparência, pela ação do pensamento, já não pode ser mais do que uma etapa, um novo momento da produção do conhecimento. Segue-se então, que esta essência, refletida na aparência primeira da coisa, se torna agora reflexo de novos conteúdos. Tornada provisória no curso incessante do pensamento, a essência alcançada transforma-se, também ela, em ponto de partida para novos e sucessivos desdobramentos. Nesse movimento, que demarca estágios progressivos no processo do conhecimento, a essência volta a ser aparência. Ou, como nos mostra Lefebvre, a essência que nasce e se forma através de suas manifestações também se esgota nelas: “em si, a essência é apenas a totalidade das aparências” (op. cit., p. 219).

Para o pensamento, esta é a única chave possível para o conhecimento do real. A recusa desta chave permitiu o surgimento de duas correntes do pensamento metafísico – o ceticismo e o idealismo, igualmente incapazes de compreender o real (Ibid., p. 216). Para o ceticismo, a objetividade inalcançável da coisa em-si aprisiona o pensamento no imediato da percepção sensível, tornando o conhecimento, em última análise, uma impossibilidade. Para o idealismo, a aparência ilusória dos fenômenos obriga o pensamento a recusar o mundo da experiência sensível, impondo-se um exílio voluntário. Retirando-se do real e fechando-se nele mesmo, o pensamento se torna absoluto. Ao pretender alcançar as verdades transcendentais absolutas, o idealista transforma o conhecimento em abstração vazia.

O conhecimento verdadeiro decorre, portanto, da atividade do pensamento que recusa as evidências (sem, no entanto, negá-las), penetrando cada vez mais profundamente no real. Um pensamento que não se fecha em si mesmo, mas que se abre ao mundo; que vai ao mundo interagir com as coisas e os seres vivos. Um pensamento que surpreende e revela a essência no exato momento em que ela se oculta, como reflexo, na aparência das coisas. Podemos então dizer, com Sartre, que “o mundo real não é, mas se faz, sofre incessantes retoques, se suaviza, se enriquece” (1987, p. 80). Com Merleau-Ponty, que “a profundidade é sempre nova” (1969, p. 80). E, finalmente, com Lênin, que “não apenas as aparências são passageiras, móveis, separadas por limites condicionais; também as essências o são” (LÊNIN, apud. LEFEBVRE, 1983, p. 294). O conteúdo concreto das coisas não está determinado de uma vez por todas, mas em permanente construção.

Escher (Tower of Babel, 1928)

1.2 – O conteúdo concreto da abstração

A produção do conhecimento constitui uma atividade prática (LEFEBVRE, op. cit., p. 49). Tomar consciência do mundo significa, num certo sentido, participar da sua produção/invenção. De acordo com Lefebvre, toda ação produtiva age no sentido de “separar um objeto definido da enorme massa do universo material” (1957, p. 104). Os nomes que atribuo às coisas, as formas através das quais eu as identifico, as medidas com as quais eu as relaciono e comparo, são modos de “recortar” o meu objeto e transformá-lo num objeto de pensamento. Essas coisas passam a constituir produtos do trabalho humano, momentaneamente isolados do todo. Ao visar um objeto, a consciência imobiliza um determinado aspecto do objeto, realizando, através da percepção, uma operação de abstração. Nesse sentido, a abstração pode ser vista como uma técnica do pensamento que separa os objetos da totalidade em que se encontram inseridos. A abstração decorre, portanto, de uma atividade prática e essencialmente produtiva. No entanto, um objeto isolado só pode ser concebido como um momento do movimento incessante que se estabelece entre o pensamento e o real. O abstrato só adquire sentido em oposição dialética ao concreto. O real não é imediatamente acessível. O real é a totalidade. Penetrar no real significa fragmentar essa totalidade inacessível para então recompô-la através da razão. A abstração será, então, apenas o ponto de partida necessário para a produção de conhecimento sobre o real.

As impressões sensíveis da percepção imediata já implicam em processos de abstração. Nesse sentido, não se pode estabelecer uma separação rígida entre as sensações e o entendimento. Na percepção, as sensações não ocorrem desligadas das escolhas, das preferências e das vivências do indivíduo. De acordo com Lefebvre, a sensação torna-se um momento interno da percepção, entendida como um todo (1983, p. 107).

Conhecer o real, através do pensamento, pressupõe, no entanto, a superação do sensível imediato da percepção. A abstração surge como indutora do seu contrário. A momentânea dissolução do real operada pela abstração torna-se, assim, uma etapa imprescindível para a irrupção do concreto. Mas, o concreto que irrompe sob o véu da abstração é sempre um concreto provisório. A totalidade recomposta pela razão jamais poderá coincidir com a totalidade exterior do mundo material. O processo de produção do conhecimento visa a totalidade do real, tende para ela, mas alcançá-la de uma vez por todas significaria o fim do movimento dialético que confere sentido ao próprio conhecimento verdadeiro. Uma vez atingida, a totalidade produzida pelo pensamento se torna, outra vez, momento deste pensamento, dando lugar à abstração que, por sua vez, fecundará a possibilidade de construção de uma nova totalidade. O processo dialético é aproximativo e sem fim. É dessa forma que, ainda segundo Lefebvre, o movimento do pensamento se torna o pensamento de um movimento, consciente das contradições do real (op. cit., p. 178).

1.3- Forma do conteúdo e conteúdo da forma

Forma e conteúdo se apresentam, tal como o abstrato e o concreto, como uma contradição dialética. Forma sem conteúdo é uma abstração vazia. É o conteúdo que determina a forma, mas uma forma não é nunca, salvo para o olhar desatento do senso comum, inteiramente adequada ao conteúdo. Como mensageira do mundo da aparência, a forma é ilusória; ela oculta o conteúdo que a determina. Mas a ocultação do conteúdo concreto não é a eliminação do conteúdo; ele subsiste como negação. Se foi na aparência sensível das coisas que o conteúdo se ocultou, é aí que ele deve ser procurado. A forma que oculta é também a forma que revela. Esse movimento, que vai do conteúdo à forma e da forma ao conteúdo, pressupõe um processo de transformação do pensamento e, portanto, o conteúdo revelado através da forma do objeto já implica na superação dialética do conteúdo original. Deste modo, a forma tornada, momentaneamente, um instrumento de decifração do real, constituirá, ela própria, uma etapa necessária do processo de construção do conhecimento.

As reflexões teóricas acima desenvolvidas devem agora permitir a retomada do tema da forma sob o prisma da morfologia urbana. Para a arquitetura, produzir uma forma significa concretizar uma idéia, dar-lhe uma existência objetiva através de um suporte material. Uma vez produzida, a forma, produto da resistência que a matéria opõe à idéia, não apenas se revela como algo distinto do conteúdo que lhe deu origem, como se autonomiza com relação a esse conteúdo, passando a abrigar novos conteúdos. O gesto que transforma a matéria, que lhe impõe recortes definidos, que individualiza um objeto entre os demais, é, nesse sentido, análogo ao ato do pensamento que opera a abstração. E, no entanto, é dessa operação de emprestar forma às coisas que resulta, em toda a sua concretude, o novo objeto produzido. A forma, assim como a abstração, é produto e produtora. Constitui, simultaneamente, o ponto de chegada de um processo de transformação da matéria bruta segundo uma intenção, e o ponto de partida para a produção de novas idéias. Submetida à idéia, através do trabalho humano, a matéria assume uma forma concreta (produto-coisa); ao interagir com o objeto produzido, o sujeito  produz uma forma abstrata (produto-imagem). Segue-se assim, que a forma, tendo a materialidade como suporte, passa, também ela, a ser o suporte de significados culturais decorrentes das práticas sociais que sobre ela incidem.

A forma urbana não se reduz, portanto, à materialidade do espaço construído. A forma consiste no resultado da operação que, dotando de contornos definidos e mensuráveis a matéria, produz objetos portadores de uma intencionalidade reconhecível, seja de ordem prática, seja de ordem estética. A forma torna a materialidade operacional e comunicante. Formalizados, os objetos tornam-se virtualmente aptos para o desempenho das funções a eles destinadas ou atribuídas. Para que os objetos funcionem não basta, no entanto, que eles estejam formalmente aptos. É necessário que sobre eles incidam as ações. São, portanto, as ações que se encarregam de atualizar os objetos, realizando, através das formas, as funções. O ajuste entre a ação incidente e o objeto agido, implica em um duplo movimento: a forma predispõe o objeto para a ação que, por sua vez, deve se submeter também à forma existente. Assim, na medida em que o funcionamento dos objetos depende fundamentalmente da forma que possuem, podemos dizer que a forma assume a condição de intermediária indispensável entre os objetos e as ações, isto é, entre os fixos e os fluxos. Os fixos, entendidos aqui como o conjunto de objetos móveis e imóveis que, articulados entre si, compõem  a paisagem urbana; e os fluxos, como o resultado direto ou indireto das ações empreendidas pelos homens visando o atendimento de suas necessidades: naturais ou criadas, legítimas ou impostas, materiais ou imateriais, que, sem prescindir também de sua carga simbólica, comandam o processo como um todo.

A forma, responsável pela mediação entre os fluxos e os fixos, pertence, então simultaneamente, aos dois mundos. Aderida e imbricada à materialidade do objeto que lhe serve de suporte, a forma compartilha com os fixos a inércia, a estabilidade, a durabilidade, a textura e o “mutismo” da matéria. Tais características permitem que as formas, através da duração de sua existência física, sobrevivam ao desaparecimento das funções originais a ela associadas.

Bol. Mus. Para. Emilio Goeldi Cienc. Hum. vol.4 no.1 Belém Apr. 2009

Veja-se, por exemplo, a redescoberta de um vestígio arqueológico, soterrado por centenas (às vezes milhares) de anos. Durante o período de ocultamento o objeto, impossibilitado para o uso, manteve-se submetido exclusivamente às forças da natureza. A resistência então oferecida pelo objeto deveu-se à matéria de que é feita o seu suporte, mas também à técnica de fabricação utilizada e à forma que recebeu o objeto. Sabe-se que a forma, modelando a superfície dos objetos (e, portanto, associada também ao emprego da técnica), pode contribuir significativamente para aumentar a resistência dos materiais[2]. Assim é que a forma, a técnica e a matéria comparecem como partes integrantes e indissolúveis da constituição dos objetos. Uma vez reencontrado o objeto arqueológico do exemplo empregado, o mutismo da matéria é, por assim dizer, encoberto e suplantado pela eloqüência comunicativa da forma. Em muitos casos, a datação por “Carbono 14” realizada através da estrutura molecular do suporte, vem apenas confirmar o que já fora antecipadamente revelado pela forma do objeto. Para o arqueólogo as formas contêm os vestígios das ações humanas, possibilitando, através do seu estudo, revelar a época e as características da sociedade que as produziu e utilizou. Retornando “ao mundo dos vivos”, o objeto reencontrado se presentifica, atualizando-se, através de sua forma, em novas funções, ainda que seu uso se restrinja, pela necessidade de proteção da materialidade de seu suporte, à pesquisa científica ou à visitação pública, como peça de uma coleção museográfica.

[1] Entendido, aqui, no sentido probabilístico do termo.

[2] Para o cálculo estrutural, essa propriedade está referida ao conceito de “rigidez pela forma”.

(extrato de texto, publicado in: DUARTE, Cristovão Fernandes. Circulação e cidade: do movimento da forma à forma do movimento (tese de Doutorado). Rio de Janeiro: IPPUR-UFRJ, 2002, pp. 91-100)


Referências bibliográficas:

LEFEBVRE, H. Le matérialisme dialectique. Paris: Presses Universitaires de France, 4a ed.,1957.

_________. Lógica formal, lógica dialética. Rio de janeiro: Civilização brasileira, 1983.

_________. La production de l’espace. Paris: Ed. Anthropos, 2000.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Rio de Janeiro: GRIFO Edições, 1969.

Signes. Paris: Gallimard, 1960.

SARTRE, Jean-Paul. Critique de la raison dialectique. Paris: Gallimard, 1960.

__________. Os pensadores, 3a ed., São Paulo: Nova Cultural, 1987.

A configuração espacial da cidade

abril 10, 2011

Escher, Convex and Concave (1955)

De acordo com Milton Santos, no curso dos processos sociais, a estrutura dita a função que se realiza através da forma que, por sua vez, pode ser expressa como estrutura revelada; “sem as formas a sociedade, através das funções e processos, não se realizaria” (1985, pp. 2 e 50-1). Assim sendo, a estratégia metodológica adotada pressupõe a possibilidade de identificar, através da análise da forma urbana, a dialética estabelecida entre os fluxos e os fixos. Como dado último verificável da realidade urbana, ela fornecerá o ponto de partida para a análise da circulação na cidade tradicional e na cidade moderna, a serem apresentadas no próximo capítulo.

Persiste, no entanto, uma reconhecida polissemia no conceito de forma urbana, impondo cuidados especiais quanto a sua utilização. Seus significados variam segundo as diferentes escalas analíticas envolvidas, bem como em função do enfoque disciplinar adotado. A reflexão filosófica de Henri Lefebvre faz o conceito de forma urbana (ou forma do urbano) abrigar novos conteúdos epistemológicos, tornando-se a forma da centralidade e da simultaneidade. Para Milton Santos, as formas geográficas (que circunscrevem a forma urbana) só adquirem sentido quando investidas pelos conteúdos sociais da ação; assim é que elas se tornam formas-conteúdos, autorizando o tratamento analítico do espaço como um híbrido de objetos e ações.

A arquitetura consagrou o uso do termo forma urbana como meio de descrever a estrutura espacial da cidade. Tal descrição tem como ponto de partida o estudo morfológico dos elementos arquitetônicos que, articulados entre si, compõem a paisagem urbana (LAMAS, 2000). Os significados da forma urbana não estão, entretanto, disponíveis como dados da realidade física das cidades, ao contrário, são construídos (mas também desconstruídos e reconstruídos) por um olhar culturalmente determinado. E existem muitas maneiras de “ver” a cidade. Não somos meros observadores do fenômeno urbano, mas parte dele. Sujeito e objeto aparecem mutuamente implicados, uma vez que as representações simbólicas derivadas da forma da cidade englobam (e explicam) também o observador. A forma da cidade não é algo imediatamente apreensível em sua totalidade. Multifacetada por natureza, a paisagem urbana oferece a cada instante sempre mais do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode escutar (LYNCH, 1997, p.1). Construímos aquilo que chamamos imagem ou representação da cidade a partir de uma série de fragmentos selecionados (voluntária e/ou involuntariamente), envolvendo fatores subjetivos como, por exemplo, lembranças individuais e a familiaridade estabelecida com determinados lugares. Imprevisíveis e intercambiáveis, os significados emprestados às formas são também mutantes ao longo da vida dos indivíduos.

Como objetos da cultura, os elementos arquitetônicos apresentam, simultaneamente, uma realidade material e uma realidade simbólica. Ao analisar o objeto cultural, Franco propõe uma distinção prévia entre “a materialidade do objeto cultural, as formas de que aquela materialidade é só o suporte contingente e, enfim, as modalidades de percepção por parte dos sujeitos produtores e consumidores daquele objeto” (1992, p. 91, grifo nosso). Para o autor, só as formas têm valor de uso cultural. A intencionalidade não pode ser depreendida da materialidade do suporte, senão de uma determinada configuração aparente (esta sim comunicante), resultante das ordenações formais a ele impostas. As modalidades de representação subjetivas, de que são capazes os produtores e usuários de um objeto cultural, por sua vez, dependeriam de sua posterior formalização em novos suportes, condição imprescindível para fazê-las interagir com os agentes culturais.

Cassirer, citado por Nunes, afirma, por sua vez, que “a imaginação do artista não inventa arbitrariamente as formas das coisas. Mostra-nos estas formas em sua verdadeira figura, tornando-as visíveis e reconhecíveis” (Apud. NUNES, 1989, p. 70). Resultantes de uma praxis artística produtiva em que os elementos materiais lhe opõem resistência dialética – ao mesmo tempo restringindo e possibilitando a expressão, as formas artísticas adquirem uma existência palpável e objetiva, que não apenas exterioriza a percepção do artista, mas transforma essa percepção num modo autêntico de ver e sentir (NUNES, op. cit., pp. 76-7).

Com relação ao estudo da forma urbana, a afirmação de Cassirer de que existe uma “verdadeira figura”, tornada visível e reconhecível através da forma, nos remete para a questão das tipologias arquitetônicas e urbanas. Às vezes negligenciada ou tratada de forma equivocada pelos estudos morfológicos, a análise tipológica ganhou grande relevância, a partir da década de sessenta, com as contribuições de Aldo Rossi e Giulio Carlo Argan, entre outros. Para Rossi, o conceito de tipo pode ser definido como “um enunciado lógico que está antes da forma e que a constitui” (1977, p. 42). Não se trata, portanto, de um modelo a ser fielmente copiado, mas de um conjunto coeso de princípios ou regras elementares, estabilizados através de processos de longa duração, que antecedem e informam as escolhas formais com que se revestem os objetos arquitetônicos. O tipo, diz Quatremere de Quincy:

(…) deve ele próprio servir de regra ao modelo (…) O modelo, entendido segundo a execução prática da arte, é um objeto que se deve repetir tal qual é; o tipo é, pelo contrário, um objeto segundo o qual qualquer pessoa pode conceber obras que não se assemelharão em nada entre si. Tudo é preciso e dado no modelo; tudo é mais ou menos vago no tipo” (Apud. ROSSI, op. cit, loc.cit. e ARGAN, 2000, p. 66).

Enquanto todas as formas são remissíveis a tipos, nenhum tipo se identifica com uma forma exclusiva (ROSSI, op. cit., p. 44). Deste modo, podemos admitir uma classificação tipológica baseada num esquema de árvore genealógica, em que uma numerosa família de experimentos formais diferentes se ramifique a partir de um tipo. Entre as tipologias arquitetônicas mais conhecidas, incluem-se: a edificação com pátio interno, que gerou (e continua gerando) uma infinidade de variações formais sobre o mesmo tema-tipo, tais como, moradias, conventos, hospitais, mercados; as edificações com planta central ou longitudinal, que originaram (entre as tantas possibilidades por eles sugeridas) uma longa relação de templos religiosos; as coberturas planas ou em cúpula; os sistemas arquitravados ou em arcos; e ainda, tipologias urbanas como a malha viária ortogonal (traçados em xadrez), a malha viária radioconcêntrica (mono ou polinucleada), a malha viária ramificada (com a ocorrência de ruas-sem-saída); os espaços abertos ou fechados, e assim por diante.

Como produto da atividade humana, o tipo não pode ser formulado a priori, mas deduzido de uma série de edifícios que apresentem uma evidente analogia formal e funcional. A determinação dos tipos resulta de processos de comparação e superposição das formas individuais, eliminando-se as particularidades de cada experimento. Chega-se, assim, a uma tipologia, deduzida pela “redução de um conjunto de variantes formais a uma forma-base comum” (ARGAN, op. cit., p. 66). Uma vez estabilizado, o tipo passa a influenciar de volta o processo de criação de novas formas.

Ainda de acordo com Argan (op. cit, p. 69), a atividade projetual apresenta dois momentos: o momento da tipologia, em que o artista “resolve” a estrutura interna da forma, tomando como referência uma determinada tipologia (a partir de um “conjunto de noções comuns ou um patrimônio de imagens”), e o momento da definição formal, que visa definir a configuração aparente do objeto, atualizando e, por assim dizer, deformando o tipo, em função das exigências atuais implicadas (técnicas construtivas, aspectos funcionais, preferências estilísticas).

O caráter universal dos tipos autoriza a uma reflexão transhistórica dos processos constitutivos da forma urbana, que será perseguida em muitos momentos desta pesquisa. Neste sentido, a analise tipológica constitui uma ferramenta de trabalho imprescindível para o estudo da forma urbana. Ela ajuda a desfazer uma certa ilusão de descontinuidade provocada pela simples constatação das diferenças entre os arranjos formais sucessivos que constituem a estrutura espacial das cidades, permitindo identificar, também, a conservação de determinados processos tipológicos que se desenvolvem no tempo e que vão sendo historicamente apropriados e progressivamente redefinidos. O curso daqueles processos não pode ser ditado pela velocidade e pela profusão com que se sucedem os experimentos formais de superfície, a cargo das ações (inovações) individuais dos arquitetos. Eles têm o seu próprio ritmo, mais lento e mais discreto, e dependem das ações coletivas cujos efeitos somente podem ser aferidos em períodos de longa duração.

(extrato de texto, publicado in: DUARTE, Cristovão Fernandes. Circulação e cidade: do movimento da forma à forma do movimento (tese de doutorado). Rio de Janeiro: IPPUR-UFRJ, 2002, pp. 84-90)


Referências bibliográficas:

ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

FRANCO, Luiz Fernando. Matéria, forma, imagem, in: AU (Arquitetura e Urbanismo), São Paulo:Editora Pini, ano 8, no. 44, out./Nov. 1992.

LAMAS, José Manuel Ressano Garcia. Morfologia urbana e desenho da cidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2000.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

LEFEBVRE, H. La revolucion urbana. Madri: Alianza Editorial, 1972.

_________. O direito à cidade. São Paulo: Ed. Moraes, 1991.

NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Ed. Ática, 1989.

ROSSI, Aldo, A arquitectura da cidade. Lisboa: Edições Cosmos, 1977.

SANTOS, Milton. Espaço e método. São Paulo: Nobel, 1985.

Jogos Olímpicos Rio-2016 X A democratização da gestão pública do espaço urbano.*

janeiro 3, 2011

A escolha do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, anunciada pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) em Copenhague no dia 02/10/2009, marca o início de um período de renovadas expectativas e discussões acerca dos destinos da cidade. Vultuosos investimentos em instalações esportivas e infraestrutura urbana predisporão a cidade para realizar de forma apropriada as competições esportivas, acolhendo com segurança, comodidade e eficiência atletas e visitantes do mundo todo. E isso após a cidade ter sediado os Jogos Panamericanos de 2007 e em meio aos preparativos para a realização em 2014 da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, quando o Estádio do Maracanã será o palco da final do campeonato. Ou seja, além dos Jogos Panamericanos, o país realizará, no espaço de dois anos, nada menos que os dois mega-eventos esportivos mais importantes da atualidade, tendo a cidade do Rio de Janeiro como principal anfitriã e protagonista.

Para Vainer, a origem deste processo remonta ao primeiro governo de Cesar Maia(1) com a elaboração do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro entre 1993 e 1994. A partir de então a cidade estaria sinalizando ao mercado mundial a consolidação de um ambiente político e econômico favorável e, sobretudo, mais seguro aos interesses comerciais com que se reveste hoje a realização de eventos internacionais(2). De fato, a eleição de Eduardo Paes em 2009, não obstante a retórica dissidente adotada na campanha eleitoral, representa a continuidade das mesmas práticas administrativas e políticas(3). Permanece o mesmo entendimento da cidade como uma mercadoria para compra e venda, submetida à lógica de mercado. A gestão pública do espaço urbano é reduzida ao gerenciamento empresarial, delegando ao capital privado a primazia na direção das estratégias econômicas locais.

O sucesso da candidatura do Rio de Janeiro, desbancando fortes e ricas concorrentes como Madri, Chicago e Tóquio, foi celebrada pela mídia nacional como uma vitória da cidade e do país. A estabilização da economia brasileira e a retomada do crescimento ao longo da última década, por um lado, e os encantos da cidade maravilhosa, bem como a alegria e a hospitalidade do povo carioca, por outro, foram as razões principais alegadas pelo discurso oficial para o resultado daquela disputa.

Há que se considerar também, para o bem e para o mal, a recente experiência com a realização dos Jogos Panamericanos de 2007 e sua influência na decisão do COI. Segundo se divulgou amplamente, do ponto de vista da organização das competições esportivas e do rendimento alcançado pelos atletas brasileiros, o Pan 2007 foi considerado um evento exitoso. Já com relação ao planejamento e à gestão dos recursos públicos investidos o que se assistiu foi algo próximo a um desastre. Em pouco tempo o tão propalado legado social e urbanístico se viu reduzido a algumas poucas arenas esportivas caras e subutilizadas ou, como no caso do Estádio Olímpico, arrendadas por valores irrisórios(4).

Embora o cálculo do montante dos investimentos seja controverso, variando conforme a fonte utilizada ou os interesses dos interlocutores em questão, estima-se, de acordo com dados divulgados pela imprensa, que os gastos gerais com o Pan 2007 podem ter chegado a R$ 4 bilhões, ultrapassando em cerca de quatro vezes o orçamento originalmente previsto(5). De acordo com as informações contidas no Plano de Trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, instituída para investigar supostas irregularidades na gestão dos recursos públicos repassados ao Comitê Organizador do PAN 2007 (CO-RIO), “os aportes de capital privado não apareceram na hora de construir um Estádio Olímpico, os patrocinadores privados declinaram do apoio à instalação de um velódromo e de um parque aquático (…), duas comunidades pobres foram removidas sumariamente e (…) grandes construtoras não se revelaram capazes de assumir, sozinhas, a construção de uma Vila Olímpica”(6).

Para a conclusão das obras da Vila Olímpica a Prefeitura foi obrigada a buscar recursos não previstos no orçamento inicial junto ao Governo Federal, assumindo em caráter excepcional obras de drenagem, pavimentação de vias, paisagismo, iluminação, entre outros serviços emergenciais. Ainda, segundo o mesmo documento, o Estádio Olímpico João Havelange foi objeto de sete contratos e vinte termos aditivos celebrados com empresas construtoras, tendo seu orçamento sido ampliado de R$ 166 milhões, em 2004, para R$ 404,6 milhões, até março de 2007.

No âmbito federal, depois de prolongada investigação sobre indícios de superfaturamento e outras irregularidades na gestão dos recursos da União gastos no PAN 2007, o Tribunal de Contas da União (TCU) condenou o Consórcio Interamericano e integrantes do Ministério do Esporte que atuaram na licitação de contratação de serviços dos Jogos Panamericanos(7). Impetrado recurso contra aquela decisão, o colegiado do TCU acatou em segunda instância as justificativas apresentadas pelo Ministério do Esporte, decidindo pelo arquivamento do processo. A argumentação então apresentada pelo ministro Walton Alencar Rodrigues indicou que “circunstâncias excepcionais, alheias à vontade dos gestores do Ministério do Esporte, condicionaram a tomada de decisões necessárias e indispensáveis ao cumprimento dos prazos para implementação das medidas tenentes à viabilização dos Jogos” (TCU – Acórdão nº 4538/2010).

Não obstante a falta de provas conclusivas ou, mesmo, o caráter conciliatório da revisão da sentença pelo colegiado do TCU, pode-se inferir da leitura dos documentos acima citados que o modelo de gestão adotado na condução dos trabalhos, seja por parte do Comitê Organizador do PAN 2007, do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) ou da Administração Pública Local, se caracterizou por um planejamento ineficiente das ações, pelo autoritarismo na tomada de decisões, pela falta de transparência no encaminhamento dos processos e pela desorganização administrativa na gestão dos recursos e no gerenciamento das obras contratadas.

Considerando-se que os recursos previstos para a realização dos Jogos Olímpicos de 2016 giram em torno de R$ 30 bilhões(8), parece de todo imprescindível a adoção de um modelo de gestão democrática que, por intermédio de uma maior participação e transparência nos processos decisórios, assegure os antídotos necessários aos problemas anteriormente verificados. Nesse sentido, a criação do Portal da Transparência, ligado à Controladoria-Geral da União (CGU), propondo-se divulgar de forma ampla e sistemática a gestão dos recursos públicos que serão aplicados nos Jogos de 2016 e da Copa de 2014 constitui uma novidade com relação ao PAN 2007. Se correta e efetivamente implementada, esta providência pode representar um aperfeiçoamento no modelo de gestão e operacionalização dos dois eventos. No entanto, será preciso avançar muito mais com relação às formas de participação e controle da sociedade.

Com relação aos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, mais especificamente, a concentração maciça e espacialmente localizada de tantos recursos em tão curto período de tempo representa a possibilidade de uma inusitada e drástica transformação urbanística, principalmente no que se refere à modernização da infraestrutura urbana da cidade(9). É um certo futuro que já se começa a desenhar e a gravidade das decisões que nortearão este projeto de cidade reivindica e impõe o envolvimento não apenas do conhecimento técnico acumulado, mas também dos sonhos e desejos compartilhados por todos que participam do cotidiano vivido desta cidade.

O caso de Barcelona, sede das Olimpíadas de 1992, é insistentemente veiculado como um exemplo de sucesso a ser seguido. No entanto, se quisermos aprender a lição mais importante que a capital da Catalunha nos oferece, precisamos ter em conta o esforço da administração pública no sentido de produzir consensos democraticamente legitimados acerca de um projeto de cidade. Como nos ensina Laura Capel-Tratjer, uma das marcas do processo de revitalização urbanística de Barcelona consistiu no estabelecimento de estreita coalizão entre a Prefeitura da cidade e o movimento popular, representado principalmente pelas associações de moradores(10).

Será necessário, portanto, um grande esforço coletivo para que os jogos olímpicos cariocas sejam bem sucedidos e que seu legado social e urbanístico possa ajudar no processo de construção de uma cidade mais democrática e social e ambientalmente mais responsável. Contudo, o maior legado que podemos (e devemos) almejar será a democratização da gestão pública do espaço urbano. Este será a mais significativa e mais duradoura de todas as conquistas inscritas no horizonte das transformações (possíveis/impossíveis) dos JJOO Rio 2016. Sem que se avance com relação às formas de participação democrática do cidadão nas decisões sobre os destinos da sua cidade, corremos sérios riscos de ver interesses privados ou setoriais prevalecerem sobre o bem comum, direcionando a aplicação dos recursos públicos segundo as lógicas de mercado.

Compartilhando de idênticas preocupações, representantes de movimentos sociais, universidades, ONGs e sindicatos, reunidos no Fórum Social Urbano – evento paralelo ao Fórum Urbano Mundial, realizado no Rio de Janeiro em março de 2010, aprovaram a “Carta Aberta ao Comitê Olímpico Internacional”(11). O documento aponta para a necessidade de que o orçamento das Olimpíadas seja participativo e transparente, estabelecendo-se como prioridade central dos recursos a serem investidos a diminuição das desigualdades sociais. Avançar na direção de tais objetivos demandará obrigatoriamente uma ativa e continuada mobilização de setores da sociedade civil organizada(12).

O mínimo que se pode pretender é que seja instaurado um amplo debate através da mídia (jornal, rádios, televisão e internet) sobre o projeto de cidade que queremos para o Rio de Janeiro; que sejam divulgadas todas as informações acerca das soluções apresentadas para os problemas enfrentados pela cidade e seus impactos sobre a vida de seus moradores, sobre os projetos de infra-estrutura urbana, sobre as prioridades para alocação dos recursos públicos; que as decisões sejam tomadas depois de consultadas as populações diretamente envolvidas. Para tanto será imprescindível que sejam propiciados canais de participação ativa da sociedade e que sejam estabelecidas estratégias de mediação do debate entre os atores envolvidos, quais sejam: técnicos, servidores e gestores públicos, dirigentes, empresários, lideranças comunitárias e demais formas de representação da sociedade civil.

Diante do desafio da luta pelo acesso à informação e à democratização da gestão pública, a Universidade deve assumir um papel fundamental. Como parceiras preferenciais do Poder Público, as universidades deveriam ser urgentemente convocadas a participar deste esforço, trazendo a público o debate travado pela comunidade acadêmica de modo a envolver o maior numero de pessoas possível nesse processo. O objetivo seria também elevar o nível de qualidade da informação disponível e apresentar alternativas de solução para os problemas vividos pela cidade. Hoje a Universidade Brasileira, em especial a rede do ensino público de graduação e pós-graduação, investe grande soma de energias e recursos em pesquisa e extensão, devendo, por isso mesmo, assumir um protagonismo cada vez mais destacado na vida cotidiana da sociedade brasileira(13).

Momentos privilegiados como esse produzem a mobilização de energias utópicas poderosas, capazes de alavancar um salto em direção ao futuro. Canalizar essas forças sociais para a pactuação de um projeto de cidade capaz de responder aos anseios mais legítimos da população será condição precípua para assegurarmos a todos o direito a uma cidade mais humana, mais justa e mais bela.

*Artigo publicado, referência bibliográfica: http://www.ub.edu/geocrit/b3w-895/b3w-895-16.htm

Biblio 3WREVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona; ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742- 98
Vol. XV, nº 895 (16), 5 de noviembre de 2010
[Serie  documental de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

Notas:

1- Cesar Maia foi prefeito da cidade por três mandatos: 1993-1996, 2001-2004 e 2005-2008.
2- Carlos Vainer, “Os liberais também fazem planejamento urbano: glosas ao “Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro”. In: Arantes, O.; Maricato, E.; Vainer, C. B.. A Cidade do Pensamento Único. Desmanchando Consensos. Petrópolis: Vozes, 2000.
3- _______. “Rio 2016: um jogo (Olímpico?) de cartas marcadas”. JE – Jornal dos Economistas, Órgão Oficial do CORECON – RJ e SINDECON – RJ. Rio de janeiro, Nº 245, Dezembro de 2009, p. 3.
4- Fabio Giambiagi, Sergio Guimarães Ferreira, Sérgio Besserman Vianna e Luiz Antonio Souto. “O Papel do Estado, o Projeto Olímpico e a Importância do Legado”. XXII Fórum Nacional 2009 – Na Crise, Brasil, Desenvolvimento de uma Sociedade Ativa e Moderna (Sociedade do Diálogo, da Tolerância, da Negociação), Rio de Janeiro, 17 e 20 de maio de 2010. ESTUDOS E PESQUISAS Nº 361. Copyright © 2010 – INAE – Instituto Nacional de Altos Estudos.
5- Ricardo Leyser. “Construindo uma ponte com a Comunidade Acadêmica para a produção de conhecimentos na áreas de legados”. In: Legados de Megaeventos Esportivos. Editores: Lamartine DaCosta, Dirce Corrêa, Elaine Rizzuti, Bernardo Villano e Ana Miragaya. Brasília: Ministério do Esporte, 2008, p.54.
6- Instituída pela Resolução da Mesa Diretora nº 1.072/07 e presidida pelo Vereador Eliomar Coelho, a CPI do PAN 2007 foi obstruída pela maioria governista na Câmara Municipal, não chegando a ser instalada para proceder a apuração das denúncias.
7- De acordo com o relatório do ministro Marcos Vilaça (TCU) os responsáveis pelo superfaturamento apontado seriam os membros da secretaria executiva do comitê organizador do Pan no Ministério do Esporte, além do Consórcio Interamericano liderado pela empresa JZ Engenharia. Um dos citados no processo é Ricardo Leyser, responsável no Ministério do Esporte pelos repasses relacionados aos Jogos Panamericanos Rio 2007 e atual Secretário Nacional da Candidatura Rio2016.
8- Ou, mais precisamente, R$ 28,85 bilhões a preços de 2008, segundo o Boletim Transparência Fiscal, 4º. bimestre 2009. Governo do Rio de Janeiro. Secretaria de Fazenda.Rio de Janeiro, Outubro de 2009.
9- James S. Myamoto. Os Grandes Eventos Esportivos e a Requalificação Urbana. Tese (Doutorado em Urbanismo) – Programa de Pós-Graduação em Urbanismo. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
10- Idéia apresentada na palestra “Barcelona Pré-Olímpica e Pós-Olímpica: transformações urbanas e socioculturais”, proferida pela socióloga Laura Capel-Tatjer, pesquisadora do Institut d’Estudis Territorials (IET) em evento realizado no Observatório das Favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 15/07/2010.
11- Ver http://forumsocialurbano.wordpress.com/2010/05/20/carta-aberta-ao-comite-olimpico-internacional/ (site consultado em 06/08/2010).
12- Entre as deliberações do Encontro foi decidida a realização do segundo Fórum Social Urbano daqui a dois anos, quando acontecerá a próxima edição do Fórum Urbano Mundial.
13- Cristóvam Buarque. “O destino da universidade”. ESTUDOS No 12. Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior. Florianópolis, agosto de 1991.